Artigo

Serenity, a cidade dos sonhos

Está cada vez mais díficil o vínculo sócio-afetivo nas cidades

A narrativa gira em torno de três amigas que cresceram juntas ali, trazendo seus dramas pessoais para o centro da ação.
A narrativa gira em torno de três amigas que cresceram juntas ali, trazendo seus dramas pessoais para o centro da ação. |  Foto: Divulgação
 

Como todos vocês já estão cansados de saber, sou fanática por séries de streaming. Esses canais pagos, que tornaram-se uma febre mundial, fato esse incrementado pela pandemia, trazem todo tipo de entretenimento. Descobri recentemente, na Netflix, a pérola Doces Magnólias, baseada nos livros homônimos de Sherryl Woods.

Ambientada em Serenity, uma cidadezinha fictícia dos EUA, a narrativa gira em torno de três amigas que cresceram juntas ali, trazendo seus dramas pessoais para o centro da ação. Mas, independentemente do teor das situações por estas vivenciadas, o que me encantou foi a estrutura daquela comunidade.

No ano retrasado, eu havia escrito um artigo sobre a série When Calls The Heart, que retratava o surgimento de uma cidade, no século 19, que se estabelecia em torno de uma mina de carvão no Canadá. Lá, as profissões e aptidões iam manifestando-se, nos cidadãos, conforme a necessidade do vilarejo, e as pessoas viviam de forma solidária e gregária, buscando ajuda mútua e visando a prosperidade de todos.

Pois bem. No seriado que assisto atualmente, algo semelhante acontece: uma comunidade surge e prospera, geração após geração, chegando ao século 21 de forma organizada, com papéis sociais bem definidos, famílias que ali se estabeleceram há séculos, cujos negócios passam de pai para filho e um forte sentimento de orgulho e proteção dessa estrutura.

Embora seja uma criação da autora, essa cidadezinha é a reprodução de algumas outras que efetivamente existem, nos EUA e no Canadá, com características similares. E por que esse modelo deu certo, mas não é a regra em todo lugar?

A resposta é simples. Essas comunidades, de modo intuitivo, recriaram a estrutura de Pólis, descrita pela filosofia grega, para definir as cidades e sua organização. Para os gregos, Pólis era um núcleo de pessoas, com estrutura política, comercial, religiosa e social definida, no qual cada um desenvolvia suas potencialidades e aptidões, em prol do bem comum.

Na Pólis, eram políticos os cidadãos aristocratas mais sábios e de personalidade amadurecida, dispostos a buscarem o melhor para a coletividade, que dedicavam-se, ainda, aos estudos, às artes e aos esportes (Olimpíadas). A classe pensante dirigia a vida destas cidades-estado, que possuíam autonomia social, política e religiosa.

Havia a classe dos militares, que guardavam e defendiam a coletividade. Era formada por guerreiros treinados desde a infância, que viviam em função de ir às guerras, conquistando terras e poder à medida que nestas destacavam-se. Precisavam estar sempre prontos para a batalha.

E existia a classe dos trabalhadores, que desempenhavam as tarefas do dia a dia, o comércio e as demais atividades, de acordo com suas aptidões ou por meio do trabalho escravo. Essa, segundo Platão, era a forma justa de estabelecer-se uma sociedade, desde que cada um exercesse sua função.

A religião ocupava papel de destaque nas Pólis, podendo cada uma delas estabelecer seus deuses e ritos, a serem recepcionados por seus residentes.

Em Doces Magnólias, depreende-se que a cidade exerce um papel essencial nas vidas dos personagens, que desde sempre ali viveram e tomam decisões em prol da comunidade, ajudando-se mutuamente, desenvolvendo atividades sociais, econômicas, acadêmicas e religiosas conforme suas habilidades, a fim de que esta se retroalimente.

Assim, há a advogada que resolve as lides jurídicas de todos, o ex-jogador profissional de futebol americano, que retorna e vai ser treinador na escola local, o médico, a chefe de cozinha que administra o restaurante, o policial... com o desempenho destas funções, decorrentes da aptidão natural de cada um dos moradores, a sociedade vai sendo administrada e a vida segue seu curso.

Isso é o que nos falta, hoje, com o crescimento desordenado das cidades. Não há um sentimento de pertencimento ou o empenho, por parte dos moradores, na criação de um ambiente de justiça e prosperidade para todos. Não há comprometimento social, pois não há, sequer, a convivência salutar, que organizou e fez com que prosperassem tantas cidades, nos séculos passados.

No mundo moderno, em que a conectividade vem da internet, sem que as pessoas sequer tenham, uma vez na vida, se encontrado, torna-se quase impossível fazer algo pelo bem de todos, posto que não há a consciência do coletivo, a idéia de comunidade, a noção de que pode haver, sim, um objetivo comum.

Onde for possível criar esse liame, que uma as pessoas e faça a comunidade trabalhar unida, será possível criar a atmosfera de Serenity. Entretanto, torna-se cada vez mais raro, em cidades grandes, cujos lares tornaram-se meros dormitórios e ninguém se conhece, criar um vínculo sócio-afetivo que reúna as pessoas, em torno de um bem maior a ser preservado.

Sobretudo a beleza e a harmonia das construções, que são muito presentes em comunidades onde há convivência intensa de seus moradores, não são muito fáceis de encontrar. Anos atrás, em visita ao Canadá, pude viver essa sensação em cidadezinhas pitorescas e nas quais todos se conheciam. Que atmosfera! Que clima maravilhoso... e raro.

Por ora, vou deliciando-me com os episódios de Doces Magnólias, enquanto não encontro meu paraíso terrestre, numa Pólis moderna , neste século 21.

Erika Figueiredo - Filosofia de Vida

Erika Figueiredo - Filosofia de Vida

Promotora de justiça.

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