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Psiquiatra da UFF divide lições do confinamento na Antártica
Há pelo menos dois meses, milhares de pessoas no Brasil foram impactadas com a transformação de suas rotinas de vida. Com a adoção do isolamento social por parte dos governos de grande parte dos municípios do país, em função da pandemia do novo coronavírus, os deslocamentos sociais foram substancialmente reduzidos e a regra passou a ser ficar em casa.
Toda essa mudança abrupta do cotidiano dos brasileiros não se deu sem dificuldades e sofrimentos psíquicos diversos, seja o luto pelos planos perdidos, o choque pela restrição da liberdade ou as novas angústias advindas de uma realidade desconhecida que estava começando a emergir.
O psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jairo Werner Júnior, que viveu na pele uma experiência de isolamento em sua recente viagem à Antártica, destaca que esse tipo de vivência exige uma “mudança de personagem”.
Lá ele desenvolveu com sua equipe o projeto Saúde Antar, que integra o Programa Antártico Brasileiro. Investigando as dimensões da saúde mental no isolamento antártico, Jairo observou a importância de, em termos simbólicos, “se vestir uma outra roupa”, com a qual se começa a pensar diferente, sentir diferente, a ter um propósito diferente: “lá nós precisávamos colocar um equipamento para o frio se quiséssemos sair; aqui é preciso colocar máscaras e se proteger de todas as formas. Lá nós tínhamos um propósito profissional que fazia com que nosso personagem se sentisse totalmente justificado em termos das limitações e condições externas. Não é diferente nesse contexto de pandemia que estamos vivendo”, explica.
Ao contrário do que muitos podem pensar, segundo o psiquiatra, o medo e ansiedade fazem parte do momento atual e podem nos proteger. “Na Antártica essas emoções nos impulsionavam a enfrentar situações de perigo de forma adequada, com a proteção necessária. Eu, por exemplo, passei por ventos de velocidade de tornado, com mais de 100 quilômetros por hora, que quebraram todas as barracas do nosso acampamento. Se nós não tivéssemos preparados para enfrentar isso, o desfecho seria muito ruim. Da mesma forma aqui. Nós temos que ter consciência e preparo para enfrentar esse tipo de exigência do momento, tomando muito cuidado com as nossas rotinas, mudando nosso personagem, estabelecendo horários, dormindo e se alimentando bem”, destaca.
Foram ao todo mais de 100 horas de entrevista, mais de 80 cadernetas de saúde mental antártica preenchidas e muitos relatórios feitos durante os quarenta dias de isolamento, experimentado em três ambientes diferentes – no acampamento, na estação e nos navios polares. De acordo com Jairo, a partir dessa vivência foi possível entender algumas das reações que toda a equipe teve, já que também foram objeto de pesquisa.
“Nesse papel duplo, de pesquisadores e pesquisados, fizemos um diário do humor, do sono, dos sentimentos, que nós já estamos usando, inclusive, no atendimento dos nossos pacientes. Todo esse trabalho, portanto, já está surtindo um efeito imediato de monitorar aspectos da vida que ficam alterados em qualquer tipo de isolamento, como esse que agora estamos vivendo”.
Jairo observa que, na situação de quarentena do Brasil, há todo o tipo de reação por parte dos indivíduos, uma vez em contato com essa nova realidade. Em especial daqueles que mais precisariam se proteger “vestindo novas roupas”, e que pertencem a grupos de risco: “Ao mesmo tempo em que alguns ficam apreensivos, outros tendem a negar essa condição como forma de enfrentar a angústia, que vem de uma insegurança. E a insegurança se origina quando você não se sente capaz de enfrentar algo. Ou você entra, então, numa situação de ansiedade explícita, ou utiliza algum mecanismo de defesa, como a negação, a minimização do problema, a racionalização. A pessoa vai tentando se sentir mais poderosa ‘ah, comigo não vai acontecer’. Temos que ter muito cuidado com isso”.
Outra dificuldade enfrentada é a de restrição dos deslocamentos pela cidade, e a sensação de se ter negado o direito como cidadão de ir e vir. Para Jairo, “isso pode trazer para algumas pessoas uma insegurança muito grande, no sentido de não se considerar essa situação suportável. Mas muitas vezes a dificuldade que o confinamento coloca é maior quando imaginada do que quando vivida. Quando se vivencia a situação, vão se descobrindo formas de adequação a essa realidade e, tendo consciência do que está acontecendo, a repercussão física e emocional é menor. Ao contrário, quando o indivíduo não tem a possibilidade de entender o que está se passando, ele pode entrar numa situação de estresse, com possíveis consequências físicas e psíquicas muito ruins”.
O pesquisador aponta também que as reações à situação de isolamento social têm sido diferentes de acordo com a idade. Uma criança, por exemplo, ainda não tem um pensamento conceitual que lhe dotará da capacidade de compreender de forma mais ampla a situação vivida. E seu funcionamento vai refletir o ambiente e o estado emocional daqueles que convivem com ela. Segundo Jairo, “a criança precisa se sentir segura, ter atividades e a possibilidade de brincar”.
Já para um adolescente, que se caracteriza pela busca de diferenciação, a situação de isolamento provavelmente traz muitos incômodos. “É comum, por exemplo, haver um afastamento dentro do próprio isolamento. Os pais terão que, através do diálogo, estabelecer um equilíbrio entre as novas restrições da realidade e o desejo do adolescente de ser livre”, explica.
Já os idosos, apesar de possuírem uma experiência de vida maior, podem se encontrar em uma situação de falta de suporte na vida e de muita insegurança, principalmente se não contarem com uma estrutura familiar e de casa, conviverem com limitações físicas ou não tiverem recursos de saúde.
Diante dessa realidade, explica o psiquiatra, é importante a construção de redes de apoio e de solidariedade, com o intuito de protegê-los, mas sem subestimá-los, ou seja, reconhecendo sua capacidade de escolha e de discernimento. “Essa ajuda precisa ser muito calibrada com a necessidade do idoso. Se, por um lado, ele tem mais experiência; de outro, exige uma maior paciência e generosidade por parte das pessoas que o cercam. Nossa responsabilidade social com eles, sejam nossos familiares ou não, é muito grande”, enfatiza.
Além de todas essas questões desafiadoras enfrentadas pelas pessoas durante o período de quarentena, a professora aposentada do Instituto de Psicologia e de Educação da UFF, Vera Maria Ramos Vanconcellos destaca mais uma. Segundo ela, o mais difícil nesse momento de isolamento social é a experiência de se ficar a sós consigo mesmo.
“A vida deu cambalhotas no mundo inteiro. Enquanto aqui no Brasil se lida com uma situação muito delicada em termos de política e de saúde pública, nós nos defrontamos com a necessidade de aprender a viver na nossa limitação humana. Fico pensando em casais que saíam de manhã cedo, se encontravam de noite, aos finais de semana iam a uma festa e que ‘empurravam com a barriga’ aquilo de que não gostavam um no outro. E, agora, seu convívio é intenso e novas negociações precisam ser feitas. Isso não é fácil. Toda essa experiência nos coloca diante da necessidade de nos ressignificar. Como vamos viver nessa hora de vertigem? Ainda temos algum tempo pela frente! Que essa experiência sirva para aprender a lidar consigo e com o outro, negociando através do diálogo a sobrevivência de todas as nossas necessidades”.
Vera ressalta que, apesar de todas as mudanças abruptas na nossa forma de vida, da perda da liberdade e de segurança, existem também aspectos potencialmente positivos dessas novas experiências.
“As crianças estão vivendo algo que pode ser muito rico: estão convivendo diariamente com pai e mãe, coisa que não faziam há muito tempo. Passam a aprender os limites de seus pais, que uma casa tem uma rotina, participando dela ativamente. Elas também aprendem que seus entes queridos não são perfeitos, não têm paciência o tempo todo, mas as amam. O que, para um adulto, é encarado como um trabalho tedioso, pode ser uma grande descoberta para a criança. É muito benéfico para ela descobrir um mundo a partir dos braços e afetos de sua família”.
Muitas têm sido as formas criativas inventadas para lidar com essa nova realidade, segundo Jairo. E é a própria atitude de enfrentamento que vai possibilitando a criação de habilidades que não se imaginava existir.
“Acho fundamental que, diante de um fato real, vejamos quais as maneiras mais adequadas de enfrentá-lo. No trabalho realizado na Antártica, listamos algumas formas que os indivíduos poderiam utilizar para isso, como buscar soluções diretas para resolver os problemas, lançar mão de práticas de espiritualidade, procurar suporte social e emocional, desenvolver parcerias, participar de ações de cooperação voluntária, enfatizar a relevância de atividades preventivas, praticar atividades físicas, mesmo que dentro de limitações, ouvir música, utilizar alguma habilidade ou hobby. É possível criar modos de mediação entre a realidade anterior, a atual e a futura. Essa ruptura pode ser enfrentada de uma forma mais saudável”, finaliza.
Publicado às 16h17
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