Niterói

Artista do Morro da Otto retrata o orgulho de ser favelado e preto

Zayre Kaus, o Exu do Morro, mostra identidades em sua obra

O artista de 30 anos mora no Morro da Otto, em Niterói
O artista de 30 anos mora no Morro da Otto, em Niterói |  Foto: Lucas Alvarenga
 

A arte pode salvar vidas e dar novas perspectivas para as mais diversas pessoas. Foi isso o que aconteceu com Zayre Kaus, de 30 anos, morador do Morro da Otto, localizado na Engenhoca, em Niterói. O artista plástico, que é transmasculino, usa seus trabalhos para falar da identidade na favela, pintando quadros ligados à espiritualidade, à cultura preta e à sexualidade, principalmente.

O filho de Aurélia Maria Nascimento dos Santos nasceu na comunidade Nova Grécia, em Tribobó, no município de São Gonçalo, e teve seu primeiro contato com a arte na escola, mas, com o tempo, as coisas ficaram mais difíceis. 

"Até porque eu acho que é uma perspectiva favelada: você cresce e entende que precisa trabalhar. Comigo foi assim, houve evasão escolar", disse ele que foi trabalhar em um salão de beleza.

Em 2016, um amigo recomendou um curso na Casa Nem, que abriga e oferece aulas para jovens LGBTQIAP+ no Rio. "Foi o meu primeiro contato com a possibilidade de corpos como o meu produzirem arte e isso me impulsionou a retratar a história de forma visual, através da foto. Depois, essa linguagem mudou, se transformou, passou por vídeo, por performance, até eu ver a necessidade de retratar isso em uma imagem que eu produzisse com as mãos, de uma forma mais ancestral, lidando com tintas e folhas, trazendo a sabedoria de terreiro como profissão", relata o artista. 

No início, suas obras nasciam no formato que conhecia, do branco europeu. Com o tempo, ele foi entendendo que isso fazia parte de uma "síndrome do impostor" e que, como uma pessoa transmasculina preta, ele deveria buscar retratar identidades que os cercam com sua arte. 

"Retomo uma narrativa que vai ser  a imagem da favela pelo favelado. A mídia colaborou para estereótipos da favela racistas, que condenam todo favelado a ser marginal e eu retomo a narrativa. Eu e vários outros caras, outros corpos favelados que estão na tentativa de retomar a narrativa. Se é da minha favela, quem vai falar sou eu. Tudo que fazemos deixamos uma missão no mundo. Com minha arte, quero retomar uma narrativa, narrar uma identidade. Venho de uma época midiática onde pouco se via preto e quando se via era no pejorativo, onde pouco se via corpos trans e quando se via era num lugar sexual. A única forma de romper esses estereótipos é existindo. Quem conta essa história sou eu. Quero deixar um quadro no mundo para os meus bisnetos olharem e se verem", contou o artista, conhecido como Exu do Morro. 

No início, as obras de Kaus eram feitas para exposição, mas hoje também estão disponíveis para a venda. Ele teve quadros na “Quem é você, Brasil?”, exposição que ocorreu em 2022, no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, e no Festival TransArte, no Teatro Gonzaguinha, no mesmo ano. Ele também participou de uma exposição na Fiocruz. Neste mês do orgulho LGBTQIAP+, ele fez parte de uma feira transmasculina na Zona Sul do Rio, que buscava artistas que retratassem a identidade real brasileira.

As obras dele retratam pessoas pretas
As obras dele retratam pessoas pretas |  Foto: Lucas Alvarenga
 

"A minha arte já chegou no Juazeiro do Norte, uma tiktoker de Recife me chamou para gravar, um mano de Aracaju me chamou para comprar e é a terra do meu avó, olha a retomada aí, minha obra vai chegar na terra do meu avó, voltar ao início, interseccionalidade que une todo o povo preto hoje", afirmou ele. 

  • Zayre é um artista preto e transmasculino
    Zayre é um artista preto e transmasculino
  • Zayre e sua mãe Aurélia Maria Nascimento dos Santos moram juntos hoje. Quem mora com eles também é o filho de Zayre de 8 anos
    Zayre e sua mãe Aurélia Maria Nascimento dos Santos moram juntos hoje. Quem mora com eles também é o filho de Zayre de 8 anos
  • Zayre pinta sobre identidades da favela
    Zayre pinta sobre identidades da favela
  • As obras dele retratam pessoas pretas
    As obras dele retratam pessoas pretas
 

Sobre ser um transmasculino 

Fugindo do conceito cisgênero, Kaus é transmasculino, que usa pronomes masculinos. Ele sempre se sentiu diferente com relação a um corpo com padrões cisgêneros desde que nasceu, mas sua transição ocorreu há 3 anos quando começou a se entender como transmasculino. Há15 anos, Kaus começou a não se encaixar em um padrão, e sua família 'rompeu' com ele, foi quando ele começou a morar no Morro da Otto. 

"O processo de transição começa na nascença e isso é negado, podado o tempo todo com a binaridade. A criança não é livre para existir além do que foi designado. Meu corpo não cabia, eu não mostrava essa binaridade. (...) A transmasculinidade bate de frente com querer ser homem, queremos existir na possibilidade de corpos trans", explica.

Kaus afirmou que demorou a entender sua transição.

"A transição vem, para mim, num lugar de surto e rompimento. Eu cheguei a um ponto que não conseguia mais fingir ser alguém. Em algum momento tudo foi ficando tão cansativo, a performance, a roupa e começou a dar trabalho viver. Eu me encontrei em um momento depressivo, em que não entendia o que estava acontecendo comigo. Comecei a trabalhar junto com psicólogas uma distorção de imagem, de não estar entendendo o que estava acontecendo, e comecei a conviver com pessoas transmasculinas e homens trans, me identificando com algumas coisas. Depois, entrei em negação por causa de comentários. Foi me sufocando estar num corpo cis. Lembro que estava em SP e comecei a surtar, me olhar no espelho e falar que estava no corpo errado, uma travesti sentou e falou que não estava no corpo errado, que existir é ser você e que eu podia ser o que eu quisesse", afirmou, que tem um filho de 8 anos.

Falo para o meu filho: você é favelado, um favelado orgulhoso, preto, seja um preto orgulhoso. Sou orgulhoso de mim! Zayre Kaus, artista plástico
 

Kaus afirma que ser um transmasculino o salvou. "Ser uma pessoa trans hoje, por mais que seja uma demanda muito difícil no Brasil, que é o país que mais mata corpos trans, foi o que salvou minha vida. No meu caso, era isso ou não. Ou transicionava ou não era nada, porque nada daquilo me cabia mais. Foi o que salvou minha vida. Achei que não ia passar dos 18 anos, com evasão escolar, criado na favela, ao lado de bocas de fumo... Vi muita gente morrer, perdi todos os meus amigos e isso atrapalhou minha transição. Não queria ser um cara preto porque todos que eu via morriam. Isso me fez achar que eu não ia passar dos 18 e hoje estou com 30, criando meu filho", contou. 

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