Saúde mental

Cadê o hospício? Sumiu! É o fim dos depósitos de pessoas

Último manicômio foi fechado no Rio, e Niterói segue o caminho

Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) segue os passos do Rio e mantém unidade apenas para assistência, sem internados
Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) segue os passos do Rio e mantém unidade apenas para assistência, sem internados |  Foto: Péricles Cutrim
  

A assistência manicomial é um modelo ultrapassado em todo o mundo. Os manicômios eram marcados por décadas pela violência e pelo encarceramento dos pacientes, que muitas das vezes não tinham qualquer contato com as famílias ou com a sociedade. 

Depois de quase um século em funcionamento, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS-Rio) encerrou as atividades do último manicômio do Rio de Janeiro, o Instituto Municipal de Assistência à Saúde (Imas) Juliano Moreira,  conhecido pelo nome de Colônia Juliano Moreira, no dia 27 de outubro. 

A Prefeitura do Rio de Janeiro definiu, em nota, que o fechamento da unidade foi um 'marco' na luta antimanicomial. “Com isso, o Município do Rio conclui o processo de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, um marco da luta antimanicomial e contra o estigma da loucura no país", disse.

Especialistas apontam que a medida é um avanço para acabar com a cultura de que homens e mulheres fossem tratados de forma desumanizada, mas apontam desafios nos serviços dos Centros de Atenção Psicossociais (Caps), que funcionam como substitutos dos complexos psiquiátricos
 

Na cidade de Niterói, o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) passa por um processo de reestruturação, e segue os passos da capital de utilizar a unidade somente para assistência.

Movimento Antimanicomial

O Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil começou na década de 1970, voltado à busca de um modelo mais humanizado de tratamento dos pacientes, reintegrados à sociedade e com o resgate de sua cidadania.

Para a Prefeitura, o fechamento do Instituto Juliano Moreira é o último capítulo de um processo que começou no município do Rio de Janeiro nos anos de 1990, com a implantação dos primeiros centros de atenção psicossocial e as primeiras residências terapêuticas - casas mantidas pela Prefeitura onde residem e são acompanhados pacientes desinstitucionalizados que não têm mais vínculos familiares.

Assistência fora dos manicômios

O município do Rio, atualmente, conta com uma rede composta por 32 Caps municipais, além de unidades de acolhimento adulto (UAA) e centros de convivência, onde os pacientes seguem recebendo toda a assistência da equipe multidisciplinar (psiquiatras, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, oficineiros, cuidadores, etc).

Como forma de garantir a assistência aos que deixavam os manicômios, em 2002, foi criado a Bolsa Incentivo à Desospitalização (Bolsa Rio), um programa de transferência de renda para auxiliar os pacientes a voltarem para a sociedade. A renda é de dois salários mínimos para os que retornam às próprias famílias, e um salário mínimo para os que passam a morar nas residências terapêuticas.

Nos casos de pacientes com quadro agudo e necessidade de acolhimento em leito, a Prefeitura explicou que o atendimento é feito nos CAPs III, com funcionamento 24 horas. A rede também conta com atendimento de urgência e emergência em saúde mental em cinco hospitais e leitos de saúde mental em hospital geral. 

Em Niterói, a Secretaria Municipal de Saúde informou que a intenção é utilizar o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) para perfil de assistência, e manter o cuidado da crise cada vez mais nos Centros de Atenção Psicossociais (Caps). Segundo o município, o HPJ será requalificado para outras atividades, mas quanto a essas atividades, a Secretaria disse que ainda estão sendo avaliadas.

No momento, o hospital mantém o atendimento de emergências psiquiátricas da cidade, com funcionamento 24 horas e acolhimento humanizado. Recentemente houve a  abertura de duas novas residências terapêuticas, além de outras já existentes na cidade, para os pacientes com longas internações que estão em fase avançada de desinstitucionalização.

O que dizem os especialistas 

Médicos psiquiatras ressaltam que o fim dos manicômios é mais que um avanço, e sim uma necessidade. A preocupação, no entanto, é que os pacientes recebam tratamentos dignos, para não serem, mais uma vez, excluídos pela sociedade.

Segundo a psiquiatra Mayara Cezario, a lógica manicomial extrapola os muros, tornando o “manicômio” não somente um lugar mas sim a perpetuação de práticas que excluem da sociedade as pessoas com transtorno mental. Ainda de acordo com a médica, os manicômios foram historicamente locais onde tudo aquilo que não era desejado pela sociedade era “escondido e esquecido”. 

Colocar um fim nas práticas manicomiais é mais do que um avanço, é uma necessidade. Entretanto, precisamos ter cautela ao entender que assistência hospitalar não necessariamente significa seguir uma lógica manicomial e que “derrubar muros” não significa acabar com esta prática Mayara Cezario, psiquiatra
 

Mayara argumenta que a proposta dos Caps quando bem elaborada pode ser muito eficaz e de suma importância para a sociedade, mas aponta as precariedades que a rede ainda enfrenta na prática.

"Nem sempre é possível observar os serviços funcionando em sua totalidade. Não é incomum, por exemplo, encontrarmos os locais funcionando com equipe médica incompleta, o que infelizmente gera grande prejuízo à assistência. Entender que o funcionamento em rede é o que sustenta um bom tratamento é essencial", complementa.

Para ela, o sistema de saúde precisa ser fortalecido, com acesso dos usuários a  todos os recursos, para as pessoas possam ser verdadeiramente reinseridas em sociedade. "Precisamos lutar sempre pelo fortalecimento do SUS e atentar para que o “manicômio” não se perpetue fora dos muros', finaliza.

O médico psiquiatra Rômulo Kling Mangeon analisa os manicômios como 'depósitos de pacientes', onde os familiares internavam e depois não voltavam mais.

Mangeon também sustenta as precariedades dos Caps. "Mal tem um médico, muitas das vezes tem um psicólogo e um terapeuta, mas não tem material humano e físico para se fazer um trabalho adequado. Os pacientes não têm as condições mínimas para se conseguir uma estabilidade da doença mental. Falta tudo", diz.

Para o psiquiatra, é necessário se ter um hospital com boas condições. "É preciso ser revisto a necessidade de se ter sim um hospital que tenha profissionais competentes para atender esses pacientes, que estando em crise, possam ter um local digno, com medicamentos e condições para que durante sua internação saia do surto e se reestruture para retornar ao convívio dos seus familiares e da sociedade", aponta.

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