Cidades

Especial População de Rua em Niterói: Quando a solidariedade não basta

População em situação já conhece pontos de apoio e distribuição de alimentos na cidade. Foto Vítor Soares

Espalhados embaixo de marquises e calçadas, quase sempre invisíveis aos olhos de quem passa, a quantidade de pessoas em situação de rua parece aumentar cada vez mais, sobretudo em cenários adversos, envolvendo desde crise econômica até a pandemia. Para diminuir esse fosso de distância social, há quem aposte na solidariedade. Instituições e grupos de sociedade civil tentam de alguma forma amenizar o abandono através das doações. Mas será que esse é o melhor caminho para garantir a sobrevivência de quem faz das ruas a própria morada?

A Arquidiocese de Niterói, por exemplo, atua com distribuição de alimentos diariamente através das pastorais na cidade, além de São Gonçalo, Itaboraí e Araruama. São iniciativas que envolvem ainda campanhas como a do agasalho; com distribuição de roupas e material de higiene, além de atendimento espiritual; abrigamentos e até internação em comunidades terapêuticas.

À frente da pastoal da rua, o Diácono Mussolini representa o lado caridoso da igreja e da solidariedade com os mais vulneráveis. O trabalho realizado há pelo menos seis anos pela pastoral já existe há cinco décadas, segundo ele. As ajudas se intensificaram devido à pandemia e as condições adversas com que muitas famílias passaram a viver desde de 2020.

"Existe um número elevado de população em situação de rua não só em Niterói, mas também em São Gonçalo. Nosso pastor Dom José caminha muito próximo às pastorais de rua e designou acessores clesiásticos para ajudarem nessa tarefa. Certos da grande pobreza e miséria vividas na própria carne, a ponto de desfigurar a dignidade dessa população sofredora"

Solidariedade

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Grupos de apoio atuam em diferentes pontos das cidades em auxílio a população em situação de rua. Foto: Marcelo Tavares

Na outra ponta da rede, estão grupos de pessoas que separam parte o dia para ajudar moradores de rua. O grupo 'Eu me importo com você' realiza esse trabalho há cerca de dois anos semanalmente distribuindo, além de alimentos, carinho, atenção e dignidade.

A ideia de formar o coletivo partiu do autônomo Maycon Carvalho, de 29 anos. Ele explica, que o começo foi difícil por ter poucas pessoas envolvidas no projeto e ajuda. Mas a rede cresceu e a ideia se multiplicou pelas ruas de Niterói.

"Entendemos que distribuir comida era uma porta de entrada, uma primeira necessidade. Aquele contato traz uma confiança da pessoa com a gente, e então conversamos, sabemos a história, muitos choram. Um cenário que infelizmente só cresce, principalmente na pandemia. Costumo dizer que nós não vamos mudar o mundo, eu sozinho não consigo. Mas muda o mundo daquela pessoa naquele momento"

No início, o trabalho consistia na produção de 30 a 40 quentinhas. Atualmente, já são mais 150, com desejo de aumentar ainda mais.

Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o Brasil não faz contagem oficial da população em situação de rua a nível nacional, correndo o risco de reproduzir a invisibilidade social no âmbito das políticas públicas. Dado o contexto da pandemia ainda existe a necessidade de ofertar a esse público espaço de acolhimento adequado às normas sanitárias de distanciamento social.

O instituto reuniu informações em um período de oito anos, de setembro de 2012 a março de 2020, sobre uma estimativa da população em situação de rua no país. Segundos os dados, até o ano passado, 221.869 perambulam pela ruas de municípios de todo o país. A região sudeste responde por mais da metade da contagem: 124.698. Fazendo um comparativo proporcional é quase a população inteira de Maricá, que conta com 164.504, de acordo com ultimo levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geográfia e Estatística (IBGE).

O instituto observou um aumento expressivo (140%) da população em situação de rua ao longo do período analisado (setembro de 2012 a março de 2020). O crescimento é observado em todas as Grandes Regiões e em municípios de todos os portes, o que sugere ser o mesmo efeito de dinâmicas nacionais.

O órgão segue dizendo que o crescimento mais intenso nos grandes municípios sugere que a crise econômica e em particular o aumento do desemprego e da pobreza sejam fatores importantes para a explicação do ocorrido.

Consequências

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Coronel da PM alerta para os diferentes tipos de moradores em situação de rua. Foto: Vítor Soares

Que a corrente de solidariedade é fundamental para garantir um pouco mais de dignidade aos aflitos isso ninguém dúvida. No entanto, à frente da 4ª Companhia de Policiamento de Área (CPA), que responde por Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá, o coronel Sylvio Guerra faz um alerta mais profundo sobre a caridade.

"Você tem os moradores de rua de antes da pandemia, ajudados por igrejas e ONGs. O objetivo é dar dignidade, comida, um local pra tomar banho, eu entendo. Porém, essas pessoas já utilizam isso pra não fazer mais nada. Hoje em dia você já tem um apanhado maior devido à Covid-19, mas também tem um número de viciados que se mistura com aquele pessoal que vive daquilo. É um conjunto de problemas que precisa ser estudado"

O coronel da Polícia Militar aponta ainda para consequências de violência geradas pela falta de oportunidade e desesperança dessa comunidade.

"Têm vários tipos de moradores de rua, são pessoas que têm família. O número aumentou muito, acarretando em mais furtos em Niterói. Identificamos isso e intensificamos o patrulhamento, principalmente no período da madrugada, são várias ocorrências"

Para Guerra a questão não é simples de resolver e vai muito além de solidariedade e segurança pública.

"O cara que está acostumado àquela vida de rua há 17 anos e ainda recebe pra ficar na rua, não vai querer sair. Niterói tem um povo muito solidário, mas tem que ter um trabalho em conjunto para que isso seja solucionado. Não é só um problema de polícia, tem que abranger outras frentes"

Apesar das mobilizações solidárias contribuirem para uma condição de vida mais digna à população em situação de rua, os esclarecimentos do coronel da Polícia Militar despertam para o cerne da questão: que a ajuda acaba não solucionando e ainda colabora para a crescente onda de pessoas nessas condições, que acabam atraídas por esses benefícios; desde alimentação até cadastro em programas sociais. Na próxima reportagem você vai descobrir quais políticas públicas são adotadas, por que elas se revelam pouco eficientes e o desfecho para esse martírio que aflige a sociedade.

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