Cidades
Moradores de Niterói e SG brilham contra o preconceito
Nas últimas semanas as redes sociais foram inflamadas por movimentos de combate ao racismo, após os recentes casos envolvendo as mortes do adolescente — João Pedro, de 14 anos, atingido por um tiro de fuzil em São Gonçalo —, e o norte-americano — George Floyd, de 40 anos, nos Estados Unidos —, ambos negros.
Entretanto, muito antes dessas tragédias, moradores de São Gonçalo e Niterói já fazem do preconceito a motivação o principal recurso para reduzir os constantes episódios de racismo e disseminar a cultura afro, seja no âmbito educacional ou cultural.
Marcyllene Maria, de 24 anos, é moradora do Jardim Catarina — bairro mais populoso de São Gonçalo e considerado um dos mais violentos do município — e é uma das fundadoras da organização comunitária 'Nós por Nós', que possui três atividades: pré-vestibular social, semana africana e o sarau.
Formanda em Ciências Ambientais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a estudante revela que o projeto foi iniciado com objetivo de dar visibilidade à biblioteca comunitária que fica no bairro.
"O trabalho do Nós por Nós começou em 2015, por iniciativa minha e de outros dois amigos. Começamos a estudar na biblioteca comunitária do bairro após um dos amigos iniciar a preparação para as provas em um pré-vestibular particular, no Alcântara. Eu não consegui fazer o pré-vestibular, então estudava na biblioteca com material e cursos oferecidos lá. Foi, então, que percebemos que no bairro faltava muita coisa e que poucas pessoas conheciam a biblioteca", explicou Marcyllene.
Um ano depois da abertura do projeto, os três amigos inauguraram o pré-vestibular social, que acontece no Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras, também no Jardim Catarina. Com o trabalho, o grupo já conseguiu cerca de 40 aprovações em diferentes universidades públicas.
O custo dos alunos é simbólico e apenas para pagar a passagem e alimentação dos professores e deles próprios, além de impressão de materiais didáticos.
Já a Semana Africana, outro projeto do grupo, acontece na semana do Dia da Consciência Negra (20 de novembro) em escolas do bairro. A ação promove atividades educacionais e culturais de matrizes africanas para mostrar que as culturas devem ser respeitadas e que a diversidade é vasta.
"A representação da comunidade negra nesse cenário de educação é muito importante, porque a presença de jovens, crianças e adolescentes negros no espaço escolar é muito grande. E, por mais que seja grande, poucos desses têm uma estrutura e aparato que possibilite que eles evoluam e busquem uma ascensão", disse.
Nos quatro anos de atuação no projeto, Marcyllene destaca uma história em questão: "Um estudante chegou para mim e disse que se não fosse a nossa persistência e o incentivo em acreditar no potencial dele, não teria conseguido. Hoje, ele estuda na Uerj e pretende ajudar a gente na coordenação do projeto, assim que retornarem as atividades".
Dançarino enfrenta barreiras de preconceito contra raça e profissão
Criado no bairro Mutuá, em São Gonçalo, mas morador recente do Barreto, na Zona Norte de Niterói, Emerson Bueno, de 30 anos, se consolidou no mundo da dança e, atualmente, exerce atividade profissional como personal trainer (treinador pessoal).
Ele começou a dançar aos 17 anos, porém, somente aos 20 se tornou bailarino profissional, fato que o ajudou a trabalhar a dança com mais vigor. Segundo o gonçalense, o início na profissão foi em meio a um cenário preconceituoso e machista.
"Comecei a dançar em uma escola particular de dança, em São Gonçalo. Fiquei nesta escola por cinco anos e, neste meio tempo, iniciei em um projeto chamado Homens na Dança, do Centro de Artes Nós da Dança (CAND), com direção da Regina Sauer, onde tive um contato mais próximo com o cenário profissional", explicou.
O dançarino ainda explica que chegou a sofrer preconceito dentro da própria casa quando optou pelo balé, tendo escutado do próprio pai a frase 'Não quero filho bixa'. Hoje, Emerson é formado em Educação Física, como possibilidade de ampliação do leque de profissionais.
"Difícil, esta é a palavra que define a introdução no cenário da dança. O homem quase sempre tem que estar preparado para seguir o rumo da sua vida profissional aos 17/18 anos. Digo o homem preto, pobre e periférico. Então escolher a dança, a cultura como opção de vida, não é fácil. Nunca tive muito apoio, minha família me incentivava na medida do possível. Lembro que em certo momento meu pai me proibiu de dançar por preconceito. Para um adolescente negro, escolher fazer dança clássica não é nada fácil", esclarece.
De acordo com ele, estruturalmente na sociedade é imposto que todo homem que escolhe fazer arte é homossexual.
"Esta foi a minha primeira experiencia com o preconceito, dentro de casa. Vivenciei muitos momentos preconceituosos, com falas de interiorização e exclusão, mas sempre tentei não dar palco para falas negativas. Um ponto que sempre acontece é a surpresa das pessoas quando falo que sou bailarino, que fiz balé, jazz, sapateado… Quando sabem que danço, a maioria logo pergunta: 'Dança Hip-Hop?'. Quando digo as modalidades que danço sempre tem uma cara de surpresa"
Apesar do preconceito e das dificuldades, Emerson é otimista com o setor, embora acredite que ainda tenha muito a avançar. Ele conta que a dança teve uma grande evolução, principalmente no cenário comercial.
"Sou o único da minha família com ensino superior e isso já foi um exemplo para a minha irmã que está prestes a se formar em uma universidade federal. Acredito que resistir e não desistir é uma influência viva para todos aqueles que estão ao seu redor.
Assumindo a beleza
"Para mim é de extrema importância, antes de assumir o cabelo natural, a mulher negra conhecer sua história, de seus antepassados, seu povo e se autoafirmar como negra, se redescobrir e se orgulhar de sua origem. A aceitação do cabelo natural vem logo depois, junto com autoconhecimento, autoestima e amor próprio", esclarece a trancista Monique Gomes, de 24 anos, moradora no bairro da Engenhoca, na Zona Norte de Niterói.
Na profissão há sete anos ela explica que iniciou a carreira quando estava em transição capilar e resolveu trançar o próprio cabelo por não ter dinheiro para pagar um trancista.
"Me interessei pela história e origem das tranças. Fui estudando e aprimorando as técnicas em mim mesma. Logo em seguida, passei a atender poucas clientes pela cidade, que hoje se tornaram múltiplas", revela Monique.
A trancista afirma que já sofreu preconceito com o próprio cabelo, pela textura, principalmente durante e depois da transição. Foi o ponto de partida para ajudar meninas a passar pela transição se sentindo bonitas. No ambiente da moda, a jovem alega ter sido discriminada.
"Já cheguei em um trabalho onde eu era da equipe de produção de moda e fui questionada por uma modelo se eu era encarregada no prédio", relembrou.
Após tanto tempo na atividade, Monique acabou adquirindo problemas de saúde, que passou por uma cirurgia em 2019 e há alguns anos faz fisioterapia.
"Meu trabalho como trancista não pode mais ser em excesso. Com isso criei uma empresa, onde montei um curso para formar novos trancistas. Além de compartilhar conhecimento, posso preservar mais minha saúde intercalando os atendimentos e as aulas", explicou.
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