Reportagem especial
Diário de um autista adulto: advogado de Niterói revela sua rotina
Pai teve diagnóstico após o laudo do filho

Por trás da pilha de processos e códigos tributários, entre uma reunião com empresários e o acolhimento de famílias que buscam tratamento para seus filhos, está Rafael Alexandre Vitorino, 42 anos. Ele é advogado tributarista, vice-presidente do Instituto Oceano Azul e pai do Benjamin. Um homem que vive com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e encontrou, na maturidade, as peças que faltavam para compreender sua própria história.
O diagnóstico do advogado veio aos 39 anos, a partir do laudo do filho Benjamin, de 6. O menino havia apresentado comportamentos que motivaram os pais a buscar especialistas. No entanto, o que o casal não contava era que o pai também é neurodivergente.
De acordo com o neurologista Carlos Regoto, fatores como genética e caracterização ambiental são considerados influentes.
Evidências indicam influência de alterações genéticas com forte herdabilidade, mas trata-se de um distúrbio geneticamente heterogêneo que produz heterogeneidade fenotípica (características físicas e comportamentais diferentes, tanto em manifestação como em gravidade)
Ainda conforme o especialista, embora o autismo tenha origem multifatorial, estudos científicos apontam que fatores ambientais também podem estar envolvidos no desenvolvimento do transtorno.
''Fatores ambientais também são considerados influentes. A idade avançada dos pais, especialmente após os 40 anos, está associada a um risco maior de ter filhos com o transtorno, devido a mutações genéticas acumuladas no esperma. Além disso, infecções virais ou bacterianas durante a gravidez, como gripe e rubéola, podem afetar o cérebro fetal, aumentando o risco de TEA''.

Rafael é considerado atualmente uma pessoa com nível de suporte entre 1 e 2 — classificação usada para indicar o grau de apoio necessário.
Hoje em dia, a gente fala em níveis de suporte, não níveis de autismo, porque é o nível de ajuda que pessoa vai precisar ao longo de sua vida. Os médicos também fazem essa classificação, mas isso não é uma coisa exata, nem estática
Rotina
O ENFOCO acompanhou um dia na vida de Rafael, que concilia agenda jurídica com sessões de terapia às quartas-feiras. A rotina é cuidadosamente organizada. Morador de São Francisco, na Zona Sul de Niterói, ele inicia o dia levando o filho à terapia multidisciplinar no mesmo bairro onde mora.
Depois, é a vez de seu compromisso diário: academia, onde costuma se exercitar entre 1 a 1h e meia. Depois, é hora de de trocar de roupa e admitir sua outra face, a de advogado.

Autismo e carreira: o poder da caneta
O niteroiense iniciou sua trajetória profissional como professor de educação física, mas foi no Direito que encontrou sua missão.
“Comecei a mergulhar mais no Direito e pensar como eu poderia ajudar mais nesse sentido. O Direito abre horizontes porque não é só o juiz, o promotor e o ministro. O advogado é uma peça fundamental na constituição, na sociedade. Isso abriu minha mente para poder ajudar outras pessoas’’, conta, animado.
É neste contexto que Rafael atua como vice-presidente do Instituto Oceano Azul, uma associação sem fins lucrativos que busca ajudar famílias no acesso ao tratamento do autismo por valores sociais.

Segundo estimativas internacionais do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), o Brasil pode ter cerca de 3 milhões de adultos autistas. No entanto, os dados oficiais ainda são escassos, e o diagnóstico em adultos segue sendo um tabu.
O diagnóstico tardio, inclusive, foi um dos fatores para que o advogado demorasse um pouco mais para ter uma percepção mais concreta sobre si mesmo. Direto, atento aos detalhes e objetivo em cada atividade, Rafael conta que a sinceridade com que se comunica é por vezes, é recebida com resistência.
“A sinceridade é minha aliada. Às vezes atrapalha, mas prefiro ser claro”, admite.
De acordo com o Doutor em Psicologia Clínica e professor da PUC-Rio Matheus Karounis, o diagnóstico tardio de Transtorno do Espectro autista na idade adulta pode ter impactos significativos.
''Muitas vezes, a pessoa pode ter passado a vida se sentindo "diferente" ou "estranha", sem compreender completamente os motivos. Isso pode gerar sentimentos de frustração, baixa autoestima e até mesmo depressão'', pontua.

Autismo na vida acadêmica
Na faculdade, a falta de diagnóstico colaborou para que o niteroiense enfrentasse alguns desafios. Sua maneira de aprender, mais auditiva do que escrita, não era compreendida pelos professores.
‘’Cada um tem uma forma de aprendizagem. A minha forma de aprender era diferente da colega do lado. Eu aprendo escutando, não tinha o costume de escrever e os professores achavam que eu não queria nada, que estava desinteressado na qualidade do trabalho deles’’, afirma.
Pensam: ‘Como vou colocar um autista pra trabalhar aqui?’ Mas se identificarem o talento, vai ser excelente. Tem autista com altas habilidades, como em tecnologia. Falta um treinamento porque as empresas hoje em dia não tem um conhecimento técnico para absorver essas peculiaridades
Pai e filho: dois mundos, o mesmo olhar
Depois de receber o diagnóstico, a relação com o filho passou a ser ainda mais empática: “Eu sei exatamente o que ele passa, porque eu já passei. Posso ajudá-lo nas dificuldades que eu enfrentei sem entender por quê”, conta. Da socialização às habilidades motoras, ele busca oferecer ao filho o que não teve: compreensão e caminhos para a independência.

Muito amor envolvido
Segundo Regoto, nos relacionamentos amorosos, o diagnóstico pode melhorar a comunicação e fortalecer os vínculos, pois ambos passam a compreender melhor as necessidades do parceiro. Foi o que aconteceu no casamento do advogado.
“Hoje, eu e a minhas esposa entendemos por que algumas situações aconteciam. Ela fala que o autismo entrou na vida dela quando o nosso filho nasceu, mas eu fiquei pensando na palavra dela. E eu falei: ‘Renata, me desculpa falar isso para você, mas o autismo está na sua vida desde que você me conheceu, há 13 anos’’’.

O nível de suporte pode aumentar ou diminuir?
Sim! Segundo o especialista Matheus Karounis, o espectro pode mudar de acordo com níveis de estresse.
''Os níveis de suporte podem variar de acordo com o estresse emocional que a pessoa adulta no espectro enfrenta. Momentos de transição, como mudanças no emprego, relacionamentos ou ambiente de vida, podem aumentar significativamente o estresse e demandar um apoio mais intenso temporariamente'', analisa.
Durante o dia, Rafael demonstra pequenas gestos que o ajudam a manter o controle emocional: segurar os dedos, movimentos repetitivos discretos, respiração pausada. “Com o tratamento, consigo perceber quando algo está saindo do controle e uso esses mecanismos”, explica.
Hoje, ele afirma que seu principal objetivo é ajudar outras pessoas que vivem com TEA: “Quando eu tive o diagnóstico, tudo se encaixou. Estava faltando uma parte do meu quebra-cabeça e eu digo que ele completou. E isso abriu minha mente para poder ajudar outras pessoas'', finaliza.


Perdeu documentos, objetos ou achou e deseja devolver? Clique aqui e participe do grupo do Enfoco no Facebook. Tá tudo lá!