Cidades

Preconceito na mira da Guarda de Niterói no Dia de Finados

Praticantes da fé de religiões de matrizes africanas são os maiores alvos de preconceito no estado do Rio. Foto: Divulgação
Praticantes da fé de religiões de matrizes africanas são os maiores alvos de preconceito no estado do Rio. Foto: Divulgação

A proximidade do Dia de Finados já movimenta diferentes religiosos em cemitérios de Niterói, São Gonçalo e Maricá. Sobretudo, pela prática e devoção celebradas no feriado, que acontece neste sábado (2). Entretanto o encontro de diferentes religiões alerta para intolerância e preconceito.

Este sábado completa um ano do ataque feito por evangélicos a um grupo de adeptos da Umbanda e do Candomblé, que participavam de um culto no Cemitério do Maruí, no Barreto, Zona Norte de Niterói.

Na ocasião, cristãos vestidos com camisas amarelas invadiram o espaço onde os umbandistas e candomblecistas ritualizavam, proferindo versos como “Jesus é o rei dos reis, a estrela da manhã”, “O nome de Jesus é poderoso”. Acuados, os integrantes das duas religiões de matrizes africanas acabaram se dispersando e indo embora.

Interferência de grupo evangélico no Cemitério Maruí, em Niterói. Imagens via Grupo Plantão Enfoco

Segundo a Codir, este ano a Guarda Civil Municipal de Niterói deve reforçar o seu efetivo no local, junto à Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop), principalmente no horário de maior fluxo de oferendas, para que ataques sejam evitados.  

“Queremos garantir que a fé não seja atacada e o município está vendo isso. Também queremos promover maiores campanhas preventivas ao longo de 2020”, finaliza a subsecretária Priscilla.

Intolerância

Ataques constantes a terreiros de candomblé e umbanda, ao redor do Rio de Janeiro, trouxeram um alerta recente aos órgãos responsáveis por cuidar dessa população, formada por adeptos de religiões de matrizes africanas. Somente este ano, pelo menos dez espaços como esses foram hostilizados em São Gonçalo. 

Atualmente, cerca de 74% dos crimes de intolerância religiosa são cometidos especificamente contra esses grupos em todo o Estado, segundo último levantamento feito pela Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião, LGBTfobia e Procedência Nacional da Assembléia Legislativa (Alerj).

Duque de Caxias, na Baixa Fluminense, figura o 1º lugar no ranking de ataques em 2019, sendo 20 casos registrados. Em seguida, aparecem Campos dos Goytacazes (15) e Nova Iguaçu (12). Segundo o órgão responsável pela pesquisa, a maioria dos casos têm envolvimento do tráfico de drogas daquela determinada região.

Pensando em promover políticas públicas, além de novas fórmulas de capacitação e preparo a quem sofre essas perseguições, a cidade de São Gonçalo já está a um passo de receber, por exemplo, aulas de conscientização voltadas aos babalorixás e ialorixás, que são líderes de centro de culto. Embora o início do projeto esteja perto, ainda não há uma data e local definidos pela Comissão.

“Eles precisam identificar o que é um crime de ódio e como devem proceder nesses casos. As religiões católicas e evangélicas têm um suporte maior com relação aos seus núcleos jurídicos. Quando recebemos denúncias de intolerâncias feitas contra esses grupos, por exemplo, a gente já recebe com o parecer jurídico deles, com um acolhimento maior da própria igreja”, explicou Lohama Machado, coordenadora da Comissão das Discriminações da Alerj.

De acordo com a Comissão, em 2018, as porcentagens de casos de intolerâncias em todos os segmentos religiosos foram os seguintes:

Candomblé (28%); Matriz africana (24%); Umbanda - (22%); Evangélicos (3,9%); Católicos (2,6%); Laicidade (2,6%); Espiritismo (1,3%); Islamismo - (1,3%); Universalista (1,3%); Não se sabe/Não informou/Não se aplica (13%). Na época, foram realizadas 600 ações de atendimentos.

Perfil

Segundo Lohama, nos últimos tempos houve um grande índice no Estado de formação de grupos chamados de 'Traficantes de Jesus’, uma vertente da intolerância religiosa nunca antes vista, comandada por supostos evangélicos, com o objetivo de destruir terreiros.

Ela também disse que outro tipo muito comum é quando os agressores, não necessariamente evangélicos, ateiam fogo contra os centros, fazem apedrejamentos, diferem agressões verbais e realizam a quebra de objetos sagrados.

“Hoje dividimos em dois momentos, trabalhamos com esses dois quadros”, aponta.

Legalização

Muitas casas de religiões de matrizes africanas ainda não são registradas e automaticamente não possuem um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Essa realidade pode ser fruto de um traço histórico, tendo a ver com a questão da descendência de povos escravizados, que eram obrigados a manter os seus terreiros em fundos de casas em séculos passados.

Fundador e presidente da Comissão de Matrizes Africanas de São Gonçalo (Comasg), o pai de santo Gilmar Hughes disse que é necessário haver reforços quanto à conscientização e regularização dos espaços de terreiros, que, segundo ele, também são mantenedores de cultura.

“A Comasg reúne e capacita os pais de santo quanto a necessidade de regularização de suas casas, de mostrar ao governo Federal suas casas registradas”, continuou.

Segundo Gilmar, em São Gonçalo, alguns babalorixás já foram impedidos de tocarem os seus terreiros devido a embates do poder paralelo (tráfico) em diferentes regiões.

Ele informou que ainda não é possível ter dados mais precisos de casos de intolerância, devido ao medo constante vivenciado por pais e mães de santo em sofrer retaliações.  

“Ainda há esse impasse para construir quantitativo, então, geralmente é muito fechado, por que como vamos alarmar o poder paralelo e deixar o pai e a mãe de santo expostos?”, indaga.

Imagens queimadas no terreiro da mãe de santo Alba de Oxóssy. Foto: Arquivo Pessoal

O último caso registrado aconteceu no último dia 13 de outubro, quando um terreiro de umbanda instalado no Colubandê, em São Gonçalo, foi incendiado por um adolescente evangélico de 17 anos. Tudo aconteceu momentos após a mãe de santo Alba de Oxóssy ter finalizado a gira de São Cosme e Damião. 

O rapaz teria aproveitado o momento em que a mulher - que também é artesã, se reuniu com os filhos de santo nos fundos do terreiro, para praticar o crime.

Na ocasião, toda a decoração da casa foi queimada.

Preconceito

“A intolerância está mais ligada ao racismo religioso do que a um culto religioso”

Gabriel Sorrentino é umbandista e responsável pelo documentário 'Cárcere dos deuses - magia ou memória em tempos de opressão.
https://youtu.be/ZC1wVGtdygI
Documentário faz referência ao preconceito e retrata o cotidiano de praticantes de religiões de matrizes africanas.

Segundo Gabriel, que também é jornalista e youtuber, o curta mostra relatos de intolerância cometida pela própria polícia e as dificuldades da campanha “Liberte Nosso Sagrado”, do deputado estadual Flávio Serafini (Psol), que segue na tentativa de recuperar cerca de 200 peças religiosas detidas no Museu da Polícia Civil, no Centro do Rio.

“Todas as culturas de etnias africanas sempre foram totalmente escravizadas”, disse ele, se referindo a comportamentos demonstrados por pessoas de outras religiões.

Sorrentino, que é umbandista desde os 6 anos, também conta que ao longo da sua vida percebeu vários casos de intolerância institucional. “Nunca fui parado na rua, porém, na escola eu sofria bastante. Por se tratar de um colégio católico, lá não era permitido usar as roupas brancas de rituais”, lamentou.

Lei

De acordo com a Lei Caó nº 7.716/69 - Art. 20, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é crime”. Inclusive, adeptos dessas religiões cobram por medidas mais efetivas nesses casos.

“Crime não é só o fato de quebrar o templo religioso, mas quando atinge o sagrado da pessoa”, ressalta Lohama Machado, da Comissão de Discriminação da Alerj.

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