Cheiro de livro

São Gonçalo: uma cidade com apenas uma livraria

Grandes lojas fecharam as portas e só uma pequena resiste

Virginia Siqueira, de 63 anos, quase precisou fechar as portas em 2020
Virginia Siqueira, de 63 anos, quase precisou fechar as portas em 2020 |  Foto: Lucas Alvarenga
 

Um livro abre portas para a imaginação. Mas o que fazer quando essas portas se tornam cada vez mais escassas? É o que acontece em São Gonçalo, um dos municípios mais populosos dos estado do Rio de Janeiro, que, mesmo com tantos habitantes, só possui uma livraria em funcionamento. 

O último censo divulgado pelo IBGE em 2021 aponta que 1.098.357 habitantes residem no município. Mesmo com números altos, o único estabelecimento que resiste de pé para mais de 1 milhão de pessoas é o 'Ler é Arte', uma pequena livraria de rua sob direção de Virginia Siqueira, de 63 anos.

E é com muita resistência que a mulher, que está a frente do local há 17 anos, vem mantendo as portas abertas. Mas essa realidade quase foi diferente durante a crise de 2020, na pandemia de coronavírus. Foi de uma parceria premeditada, entre Virginia e escritores da cidade, que saiu um 'ar de alívio' para conseguir dar continuidade nos negócios.

"Os escritores de São Gonçalo não tinham um ponto de referência para deixar os livros deles, e a livraria sempre aceitou, a gente tem que ajudar um ao outro. Eu liguei para um dos autores, que é o Erick Bernardo, e falei: 'ó Erick, você vai até a livraria pegar seus livros, que eu vou fechar'. Aí, juntou o Erick com o Mário Lima, e fizeram uma campanha pela internet, e nisso as pessoas vieram e começaram a comprar", relata.

Escritores gonçalenses tem um espaço especial no local
Escritores gonçalenses tem um espaço especial no local |  Foto: Lucas Alvarenga
  

As livrarias têm entrado em um período de declínio no Brasil, e isso ficou evidente principalmente após grandes nomes como Saraiva e Cultura, em 2018, entrarem com um pedido de recuperação judicial, culminando na diminuição de lojas e demissões de funcionários.

Em medidas mais drásticas, a Nobel,  também bastante conhecida, precisou fechar todas as portas. O estabelecimento, que possuía filial em São Gonçalo, decretou falência no dia 11 de maio deste ano. Por meio de nota nas redes sociais, eles apontaram que "como um negócio, não foi suficiente".

Livraria possuí grandes nomes da literatura
Livraria possuí grandes nomes da literatura |  Foto: Lucas Alvarenga
  

Para Virgínia, essa crise tem alguns culpados: "Um livro é caro! É imposto que a gente paga em cima do livro. E na época escolar, as pessoas vinham na livraria encomendar os livros. Era um contato dos clientes com o proprietário. Agora, os livros escolares estão sendo vendidos dentro das escolas. As editoras mesmo abriram esse canal com as escolas para venderem dentro das escolas, as livrarias não estão tendo mais o porquê das pessoas irem".

Pesado no bolso

Para Alexandre Farbiarz, professor do curso de Jornalismo e do programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da UFF, o Brasil sempre sofreu um déficit na distribuição de livrarias pelo país. Isso tudo tendo como base um fator econômico, que culminou em uma repartição desigual.

"O Brasil sempre foi um país que teve uma quantidade muito baixa de livrarias per capita. Concentradas, principalmente, no Sul e Sudeste. Grandes capitais tinham um pouco mais de livrarias, mas o interior nada. Você tem aí o fator do público, que é a baixa renda, o Brasil é um país muito pobre, muito desigual. As livrarias se concentram, exatamente, onde você tem a população de mais renda, e os livros são caros", explica.

Farbiarz destaca que essa crise não é algo novo, e pontua grandes vilões nessa história: "População de baixa renda não tem condições de comprar livros ou, pelo menos, numa quantidade que sustente uma livraria. E cada vez pior. Você tem do outro lado, as livrarias com uma baixa distribuição e as editoras com uma baixa tiragem para um país desse tamanho. Então os livros acabam sendo caros exatamente porque é uma tiragem baixa".

Ler é Arte

Local tem decorações que foram presentes especiais de amigos que morreram durante a pandemia
Local tem decorações que foram presentes especiais de amigos que morreram durante a pandemia |  Foto: Lucas Alvarenga
  

A história da pequena livraria localizada na Galeria Matriz, no bairro Zé Garoto, começa há 17 anos quando, junto de mais duas amigas, Virginia, movida por sua paixão pelos livros, montou o local.

"Com o passar do tempo elas duas [amigas] foram para outros lugares, deixaram a livraria, foram procurar outros sonhos, e eu falei: 'vou continuar'. Cada ano é um ano, e eu consegui ficar até este ano, que é uma luta", conta. 

No meio de tanta luta, o estabelecimento ganhou o Prêmio Flisgo de Cidadania Cultural, na categoria Literatura. E veio no momento certo, já que a premiação impulsionou ainda mais os negócios.

Que todos continuem lendo, porque se você não ler, sua cabeça vai virar um mingau! Tem que ler de tudo, pesquisar, continuar vendo o que é verdade e o que é mentira Virginia Siqueira, livreira
  

"Eu queria que o pessoal não desistisse da leitura, eu sei que a livraria física vai cada dia mais diminuir, eu tenho certeza disso, porque a internet é a que tá mandando e tudo agora você só consegue pela internet", diz.

O mundo digital

O fenômeno citado pela livreira vem se tornando cada vez mais real com os avanços tecnológicos. No meio desse fenômeno evolutivo, muitas lojas começaram a investir e migrar para o mundo digital, como explica Thiago Sarraf, Fundador da Doutor E-commerce que atende mais de 2500 lojistas nesse segmento.

"Já estávamos vivenciando uma digitalização das lojas, de qualquer segmento, e a pandemia forçou a entrada não apenas de lojas, mas também de consumidores para o ambiente digital. Mas, da mesma forma que o rádio não deixou de existir com a chegada da televisão, e a mesma não deixou de existir por causa da internet, o físico também não vai deixar de existir com o online", garante.

Para Sarraf, muitas pessoas ainda preferem fazer compras em lojas físicas, principalmente se tratando de livros. No período antes da pandemia, o especialista explicou que o varejo online de todos os segmentos representava apenas 5% do físico, mas que esses números vão passar dos 20%. 

"Ou seja, estamos passando por um momento de digitalização das lojas e dos consumidores. A pandemia obrigou que muitos começassem a consumir online e este hábito veio para ficar", pontua.

Mesmo assim, quando falamos de brasileiros, Sarraf ressalta que também estamos falando de consumidores que querem agilidade e têm pressa no processo, e isso não passou despercebido no E-commerce.

"O brasileiro é um consumidor com pressa e muitas vezes disposto a pagar para ter aquele produto com maior velocidade em suas mãos. Os marketplaces estão investindo em campanhas de entrega no mesmo dia ou até em 24hrs. E quem vende online sabe que a operação tem custos. Ainda há muito espaço para crescer dentro do online e muitas possibilidades de integrar o físico e digital", finaliza.

Medidas públicas

Existem alguns meios adotados pela prefeitura de São Gonçalo que podem fazer com que a paixão pela leitura da população continue em vigor. A Biblioteca Municipal Genebaldo Rosa, no Mutondo, por exemplo, é aberta ao público e conta com diversos títulos disponíveis.

Além dela, segundo a Secretaria de Educação, muitas escolas municipais possuem salas de leitura ou bibliotecas, onde são realizados eventos para contar histórias e lançar livros, exaltando autores gonçalenses.

"Na rede municipal também existem projetos como o  'Novos Leitores', que traz, além da leitura, reflexão sobre os temas dos livros", acrescenta. 

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