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Umbanda: A religião que lança luz contra a ignorância

Imagem ilustrativa da imagem Umbanda: A religião que lança luz contra a ignorância
|  Foto: Pedro Conforte
O estado do Rio de Janeiro é o segundo maior em número de denúncias relacionadas a violações religiosas. Foto: Arquivo

Em junho duas amigas acusaram um motorista de aplicativo de intolerância religiosa após serem deixadas no meio da rua. Na ocasião, elas relataram que aguardavam a chegada do motorista na Baixada Fluminense para ir a um terreiro de Umbanda em São Gonçalo. Mas assim que o motorista chegou ele fez a seguinta afirmativa:

"No meu carro, vestidas assim, vocês não entram. Nem suas bolsas quero que encostem aqui"

De acordo com dados do Disque 100, coletados entre janeiro e agosto de 2021, o estado do Rio de Janeiro é o segundo maior em número de denúncias relacionadas a violações religiosas, com 30.481 denúncias e 120.336 violações, perdendo apenas para São Paulo, que registrou 51.662 denúncias e 193.813 violações. Entre os municípios, São Gonçalo aparece na quarta posição registrando 1.375 protocolos, com 1.525 denúncias, e 5.753 violações.

A invisibilidade das religiões de matriz afro-brasileira também aparece como um problema central evidente nos dados coletados pelos órgãos públicos. No ano passado, em 2020, uma pesquisa do Datafolha mostrou que seguidores de Umbanda, Candomblé e outras religiões afro-brasileiras correspondiam a 2% da população brasileira. No último Censo do IBGE, de 2010, o número era de 0,3%. Marcia D’Oxum, líder de um terreiro em São Gonçalo, acredita que o levantamento, quando feito pelos próprios adeptos, se torna mais fiel à realidade.

O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio contabilizou no ano passado, 23 casos de ataques a culto religioso em todo o estado. A tipificação criminal é determinada pela ridicularização pública, impedimento ou perturbação de cerimônia religiosa.

O número é um pouco menor que o de 2019, ano pré-pandemia, em que 32 casos foram registrados. No total, as delegacias da Secretaria de Polícia Civil fizeram 1.355 registros de ocorrência de crimes que podem estar relacionados à intolerância religiosa em 2020, mais de três casos por dia.

Nesse contexto se incluem ainda os casos de injúria por preconceito (1.188 vítimas); e preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional (144).

A injúria por preconceito é o ato de discriminar um indivíduo em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem. Já o preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional tem por objetivo a inferiorização de todo um grupo étnico-racial e atinge a dignidade humana. O instituto ressalta ainda que que esses crimes são, frequentemente, subnotificados.

Origem de luz contra o ódio e a ignorância

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A Umbanda se baseia em três conceitos fundamentais: luz, caridade e amor. Foto: Vítor Soares

Fundada há mais de 11 décadas, a Umbanda completa 113 anos nesta segunda-feira (15) atravessando constantes evoluções para fincar seu marco na história. Religião monoteísta e afro-brasileira, foi anunciada por Zélio Fernandino de Moraes, em São Gonçalo, na data de 15 de novembro de 1908, em uma casa na Rua Marechal Floriano Peixoto, através da manifestação do espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, mediunizado no jovem Zélio.

A Umbanda é mestiça de índios, negros e europeus e baseia-se em três conceitos fundamentais: luz, caridade e amor. Mas, no decorrer dos anos a tradição religiosa foi demonizada e execrada, seja por líderes de outras religiões, e pessoas que ainda não compreendem o sentido da Umbanda.

Símbolo de resistência, tem papel fundamental na história do Brasil e do mundo, dentro de um contexto de perseguição e ataques. Segundo o IBGE, no Brasil, existem 407.331 seguidores da religião, de acordo com o último Censo de 2010. O número, corroído pelo silêncio, pode ser ainda maior. No estado do Rio, quase 90 mil pessoas se afirmam umbandistas.

Já em São Gonçalo, berço da umbanda, pouco mais de 4,8 mil pessoas são adeptas da religião. É a segunda em números do estado, atrás apenas da Capital, com 52.213. Em seguida aparece Niterói (3.833); seguida por Nova Iguaçu (3.787) e Duque de Caxias (3.389).

Responsável pelo Templo Espírita São Lázaro (TESL), no bairro do Pita, Pai Fernando D´Oxum mantém a tradição que sua mãe iniciou em 1991. Desde 2016, após o falecimento da matriarca, ele segue à frente do templo lutando em diversas frentes para manter o nome e as tradições vivos.

"Como todo templo umbandista o terreiro começa no fundo do quintal e aqui tento manter essa tradição. Recebia muita gente, através de consultas e das festas, agora pretendemos voltar em janeiro, com o avanço da vacinação"

Pai Fernando D´Oxum

Pai Fernando também é membro do Conselho Municipal de Cultura para matrizes africanas de São Gonçalo, que inclusive briga para a implementação do museu da umbanda na cidade. O projeto, iniciativa da sociedade civil aliada a esforços municipais da atual gestão, pretende ser um elo na corrente do tempo para manter viva as memórias da religião africana.

"A nossa ideia é também para colocar ao menos uma totem que seja, dizendo que ali foi o local onde o Zélio morou, e é um marco histórico. Algo que remeta às suas memórias que foram destruídas pelo poder público. O patrimônio histórico precisava ser preservado".

Sobre episódios violentos em relação à religião, Pai Fernando diz que nunca sofreu nenhum ataque ou ameaça, mas que lida, diariamente, com o burburinho indiferente da vizinhança. Ele traça um paralelo do passado da religião com o futuro e resume o sentimento pelo qual passa os que tentam ensinar os estudos das matrizes africanas.

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Pai Fernando D´Oxum é responsável por um templo em São Gonçalo: perseguição. Foto: Vítor Soares

"Resumo em uma palavra: perseguida. Existe um projeto de dominação territorial que é desenvolvido pelas igrejas neopentecostais desde os anos 80. No livro do Edir Macedo [Orixás, Caboclos e Guias. Deuses ou demônios?, 1997], ele faz um link direto entre orixás, caboclos e pretos velhos a demônios, o que não é uma crença da umbanda e nem do candomblé. O demônio não existe dentro da nossa cultura. Então, ele transforma o mal da humanidade na crença da umbanda e do candomblé, demonizando ambas"

Guerra religiosa

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Somente nas últimas eleições de 2020, houve um aumento de 34% no registro de candidaturas utilizadas com designação de pastores e pastoras. Foto: Arquivo

Segundo a Federação Nacional das Religiões Afro-Brasileiras (Fnab) a instituição se depara, diariamente, com casos de intolerância religiosa.

Doutoranda e mestre em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Ppghs/Uerj) e especialista em Ensino e Histórias Africanas e Afro-Brasileiras pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Camilla Fogaça explica que o contexto da intolerância religiosa está intimamente ligado às políticas públicas e em indiferenças religiosas que se refletem na sociedade através do crescimento de outras religiões.

"É muito difícil separar, em São Gonçalo, a questão religiosa do município, que é católico, de origem católica. Essa configuração vai mudando, principalmente a partir da década de 70 e 80, quando há um crescimento do neopentecostalismo no Brasil e com isso também em São Gonçalo, quando o município é afastado do grande centro do estado do Rio, aliado às perdas econômicas. Nessas brechas de deficiências do estado, entra o pentecostalismo com campanhas de assistência aos pobres, de ascensão social, dando às mulheres lugares de destaque, como pastoras. Junto com esse crescimento pentecostal também cresce a intolerância religiosa, que traz em seu cerne, uma batalha espiritual contra o mal, e o mal, são os afro-religiosos. É uma guerra religiosa".

Camilla Fogaça, doutoranda e mestre em História Social da UERJ

A especialista diz ainda que a questão avança para outros campos, como o político.

"Na visão pentecostal é uma batalha, uma guerra religiosa, que vai se transmutar para o campo político de São Gonçalo, virando de fato uma guerra entre as religiões, onde o catolicismo fica estagnado, o pentecostalismo cresce e os afros vão passar a reagir. E quando eu falo afros me refiro à umbanda e ao candomblé"

Segundo Camilla, o crescimento da intolerância fica evidente no governo da Aparecida Panisset [2005-2012]. É nesse contexto que acontece a derrubada do imóvel, em 2011, onde viveu Zélio Fernandino, anunciador da umbanda em São Gonçalo.

Dentro do cenário político, somente nas últimas eleições municipais em 2020, houve um aumento de 34% no registro de candidatos que utilizaram a designação de pastores e pastoras no nome que apareceram nas urnas, incluindo siglas e abreviações. Ainda no último pleito, os candidatos religiosos cresceram 26% em comparação a 2016, somando 8.783.

Pará, Rio, e Goiás são os estados com maior proporção de candidaturas explicitamente evangélicas 72%, 42%, 37%, respectivamente, acima do registrado no restante do país. Segundo o último censo do IBGE (2010), o número de católicos, que já foi de mais de 90% no país, ficou em 65%. Traduzindo há décadas um movimento de mudança em curso no Brasil no perfil do cristianismo.

Museu da Umbanda

Lutando em um cenário adverso e com o objetivo de resgatar o passado e reconstruir o futuro, surge, em 2019, a ideia do Museu da Umbanda, em São Gonçalo, instituição que poderá trazer a possibilidade de territorializar a religião em seu berço.

O objetivo é desenvolver exposições temáticas e produzir conhecimento cultural nos campos da arte, música, literatura, dança, entre outros. O MuseUmbanda pretende ser um novo espaço para o resgate da cultura e do saber. Segundo a prefeitura, a implementação do aparelho cultural está prevista para 2022.

A concretização envolve esforços da sociedade civil, através de membros do conselho de cultura e matrizes africanas, parlamentares da cidade, e o poder público, que deverá ceder um espaço para a instalação do aparelho. A meta é que a inauguração do MuseUmbanda, de acordo com o cronograma previsto, aconteça no dia 20 de novembro de 2024.

O espaço deve abrigar ao menos cinco exposições permanentes: “Zélio e o Nascimento da Umbanda”; “Intolerância religiosa”; “O que é Umbanda”; “ Outras Umbandas”; e “Plantas que curam e protegem”. Exposições temporárias que tenham como temática negritude, religiões afro-brasileiras, história de São Gonçalo, religiões indígenas e intolerância religiosa também devem participar do local.

O museu também deve compor oficinas em artesanato, música, teatro, dança e saberes ancestrais composto de uma biblioteca dedicada à cultura das matrizes africanas, autores clássicos e contemporâneos, buscando incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". O projeto deve contar ainda com uma sala que será oferecida para ampliação da delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância sendo também uma instituição parceira do Ministério Público para receber, processar e destinar as denúncias de Intolerância Religiosa que possam surgir.

Programação

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Na Semana da Umbanda, São Gonçalo promove diversas atividades. Foto: Vítor Soares

Como ponto de partida, São Gonçalo deu início à 'Semana da Umbanda', comemorada pela primeira vez do dia 11 ao dia 20, com programações, discussões, palestras de estudiosos e pensadores sobre o tema, além de convidados de terreiros da cidade. No dia 20, último dia do evento, o site do museUmbanda será lançado.

Segunda-feira (15) - Na Praça Zélio Fernandino de Moraes, em Neves, acontece a solenidade do Dia da Umbanda, com a Lavagem da Praça Zélio Fernandino de Moraes e inauguração de uma placa de homenagem à data. Logo em seguida, haverá uma apresentação cultural.

Terça-feira (16) - Mesa de debates “Umbanda, Zélia e São Gonçalo”, também com a comissão organizadora da 1ª Semana da Umbanda. Como convidados, os professores Rui Aniceto, Luciano Tardock, Camila Fogaça e Pedro Rebelo. O evento acontece às 19h, no Centro Cultural Joaquim Lavoura.

Sexta-feira (19) - Segunda Cerimônia Marco Zero da Umbanda em São Gonçalo, às 16h, na Câmara Municipal, no Centro. Na ocasião, haverá apresentação cultural, lançamento do artigo científico “Lugar de luta e memória: A construção do Marco Zero da Umbanda em São Gonçalo/RJ” e uma homenagem com entrega de monções para os dirigentes gonçalenses das religiões afro-brasileiras.

No dia 20 acontece o encerrando da programação com o lançamento do site MuseUmbanda e a importância na luta contra a Intolerância Religiosa. Como convidados, os autores Alexandre Cumino, José Beniste, Cláudia Alexandre e o jornalista Marcelo Fritz. O lançamento acontece às 19h, no Teatro Municipal de São Gonçalo.

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