Polícia
As vítimas do tráfico nas ruas de Niterói
O olhar atento e desconfiado de um menino que aparenta ter 10 anos, agachado em um canto da Rua Joaquim Távora, em Icaraí, na Zona Sul de Niterói — sempre observando a movimentação de pedestres e veículos que passam pela via, de forma assustada e desconfiada, nos segundos em que prepara pequenas pedras de crack, dentro de um copo plástico, para consumo próprio - revela a face de um novo surgimento de cracolândia em plena luz do dia em um bairro nobre da cidade.
No local, estima-se que cerca de dez pessoas - entre homens, mulheres, crianças e adolescentes - tenham feito da via moradia. A situação, que tem tirado a paz de moradores, acabou se tornando recorrente também em outro ponto do município, como é o caso da Rua São Lourenço, na Região Central.
Neste segundo espaço, dezenas de famílias - formadas por pessoas de todas as idades, se apropriam de um terreno baldio e fazem uso de entorpecentes dia e noite, segundo relatos de moradores da região.
De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SASDH), equipes de educadores sociais realizam, em média, 500 abordagens mensais a pessoas em situação de rua, em todas as regiões de Niterói, onde buscam sensibilizar essas pessoas para irem para o Centro Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop).
Em média, 230 pessoas são encaminhadas, mensalmente, ao local. No entanto, não são, evidentemente, números fixos, já que essas pessoas têm a liberdade de ficar ou não em abrigos, podendo inclusive regressar aos pontos de onde saíram.
Quem vive nessas duas regiões, de Icaraí e São Lourenço, lamenta a extrema sensação de insegurança e relata inúmeros casos de roubos a pedestres, atos de violência e brigas entre os próprios usuários de drogas, situações que trazem incômodos e preocupações.
Uma moradora da Travessa Santo Antônio, próxima à comunidade do Sabão, na Região Central, contou que já virou rotina os casos de assaltos em sua rua. Segundo ela, os crimes são praticados pelos usuários de drogas.
“Eu estava indo para a igreja, por volta das 17h. Um casal entrou em um depósito já falido, ali na frente, e roubou um ventilador. Eles levam para a comunidade do Sabão e trocam por drogas. É bem arriscado andar por aqui. Eles roubam tudo, inclusive já levaram um mármore preso na parede dessa construção ao lado. Já flagrei eles tentando subir no poste para roubar fio e trocar por drogas”
revela a moradora, que não quis se identificar por medo.
Perfil
Segundo as denúncias, a falta de policiamento e fiscalização facilitam as ações.
Testemunhas afirmam que na Rua São Lourenço, por exemplo, moradores de rua, em sua maioria usuários de entorpecentes, costumam se esconder em um matagal, que já foi uma igreja.
“Eu reparo que é mais mulher e homem, criança muito não. É mais adulto e jovem. Esse trecho é terrível. É preciso fazer alguma coisa nesse canto. Fica muito ruim. Muita menina, muita mocinha. Dá uma pena!”, desabafa a outra moradora que preferiu o anonimato.
Já em Icaraí, uma residente de um condomínio próximo de onde ficam os moradores de rua, conta que os vizinhos já chegaram a ser atingidos por pedras enquanto estacionavam o carro.
“É muito barulho, falatório, às vezes eles brigam. Muito complicado mesmo, sabe?”, reclama o morador.
Tráfico e a Cracolândia
Atualmente, cerca de 82 comunidades de Niterói são dominadas pela facção criminosa Comando Vermelho (CV), conforme Sylvio Guerra, coronel do 12º Batalhão de Polícia Militar de Niterói. Segundo ele, vendas de drogas como crack, que chegam até aos moradores de rua, não são específicas dessa facção.
"A visão que eu tenho é que o crack vem de tudo. Eles [traficantes] querem é lucro, é comércio. Se chegar lá e pedir um crack ele vai ter, se pedir cocaína terá, se quiser um telefone ele vai ter. É sem escrúpulos. O tráfico faz tudo".
revela o comandante do batalhão de Niterói.
A declaração do comando vai de encontro ao perfil da facção difundido entre as redes sociais, onde criminosos estabelecem políticas de comercialização de entorpecentes em comunidades.
No caso em especial do CV, a facção é conhecida pela venda do crack, apesar das lideranças descentralizadas. Outras facções, em sua maioria, optam pela não comercialização, considerando ainda que justamente por conta da possibilidade de formação de 'cracolândias' no entorno. Seria coincidência que as ruas Joaquim Távora e São Lourenço sejam próximas ao Morro do Cavalão e Sabão, respectivamente, ambas dominadas pelo CV?
Ainda segundo Sylvio Guerra, a única preocupação com relação a predominância de uma só facção na cidade é continuar trabalhando e agindo contra a criminalidade.
"Pra mim, [a cidade] ser comandada pelo CV não influencia em nada. Continuarei subindo em morro. Vamos continuar na mesma batida e se possível acelerar as incursões", relata o coronel.
Membro da Comissão de Segurança Pública e Controle Urbano da Câmara Municipal de Niterói, o vereador Sandro Araújo (PPS) argumenta que o mapeamento das populações de rua, com acompanhamento agudo de seus hábitos, ao lado de medidas de prevenção e tratamento formam o conjunto que pode equilibrar a situação da dependência do crack por essas pessoas.
Já a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SASDH) informa que equipes de abordagem social da secretaria realizam ações em locais críticos de forma programada e continuada, esclarecendo que somente nos últimos três meses, foram realizados 633 atendimentos a pessoas em situação de rua.
Conforme a pasta, o grupo de trabalho é formado por assistentes sociais, psicólogos e educadores, que abordam as pessoas em situação de rua e tentam levá-las para o Centro Pop. As ações são acompanhadas pela Guarda Municipal, quando necessário.
Serviço
No centro de acolhimento, a pessoa tem a possibilidade de obter a segunda via de documentos, arrumar um emprego, retomar os estudos, voltar para a família e viver de forma digna.
Questionada sobre a existência de programas de atendimento a esta população, a Prefeitura de Niterói explica que a cidade abriga atualmente três locais equipados, reforçando que "não há insuficiência de vagas nos centros de acolhimento do município".
Saiba os locais
Casa de Acolhimento Florestan Fernandes, que oferece 50 vagas para homens adultos; Centro de Acolhimento Lélia Gonzalez, com 50 vagas para mulheres e famílias, e o Centro de Acolhimento Arthur Bispo do Rosário, com 30 vagas para homens adultos.
Além disso, há dois centros de acolhimento para crianças, como a Casa de Acolhimento para meninas Lisaura Ruas (20 vagas para meninas de 6 a 17 anos e meninos de 6 a 11 anos) e o Centro de acolhimento para meninos Paulo Freire (20 vagas para meninos de 12 até 17 anos).
A Secretaria de Saúde informou que também possui o 'Consultório na Rua', serviço da atenção básica, que presta atendimento à saúde da população em situação de rua, considerando suas diferentes necessidades.
Através dele o usuário de drogas pode ser encaminhado para atendimento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) Álcool e Drogas, onde terá acompanhamento de uma equipe multidisciplinar para lidar com o vício.
Direitos Humanos
Chefiando a Comissão de Direitos Humanos, da Criança e do Adolescente (CDHCA) da Câmara dos Vereadores, Renatinho do Psol argumenta que a cidade apresenta muitas contradições.
"Há muitos recursos, mas a maior parte desses não se destina a políticas de prevenção e tratamento da dependência em álcool e drogas e nem a políticas de assistência à população em situação de rua. Em nossa cidade,
relata o parlamentar.
tanto os adictos quanto a população em situação de rua são tratados como casos de polícia e não como pessoas que precisam de políticas sociais e de saúde pública".
O político ressaltou que "não há nenhum indicador que possa confirmar a hipótese de que a população em situação de rua seja a origem da violência e da criminalidade em nossa cidade".
E foi além ao dizer que atualmente a população formada por dependentes químicos "é na verdade vítima de múltiplas violências do Estado, que, em tempos de crise econômica e desemprego em massa, nega os seus direitos mais básicos e ainda criminaliza, persegue, encarcera e em alguns casos mata essas pessoas, a maioria negra e com origem nas periferias".
Renatinho finalizou dizendo que já denunciou esse cenário e apresentou uma representação à Defensoria Geral e ao Ministério Público.
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