Medo

'Não tenho paz', desabafa mulher trans agredida em Niterói

Nycolle Dellveck levou tiro no rosto na última semana no centro

Caso foi registrado na delegacia do Centro de Niterói
Caso foi registrado na delegacia do Centro de Niterói |  Foto: Lucas Alvarenga
  

A mulher trans que foi agredida por dois homens no Centro de Niterói no último dia 21 relata que sua rotina mudou desde o acontecido. Nycolle Dellveck, de 25 anos, desabafa que a vida parou e que não consegue ânimo para seguir. 

“Já não tenho paz, não me sinto bem e nem segura, já não tenho mais ânimo de me arrumar e botar a bola pra frente e levar minha vida. Estou parada, temendo por mim e pelos meus familiares também”, diz. 

Ela acabou ferida no rosto por um tiro e alega que sofreu intolerância religiosa, já que o agressor perguntou se ela gostava de fazer macumba. O acusado do crime é Marciano da Silva Marques, de 45 anos. O filho dele, de 17 anos, que, suspeito de ajudar o pai no crime, foi apreendido nesta segunda (28) na Baixada. 

Menor suspeito de ajudar o pai a atirar foi apreendido nesta segunda
  

Nycolle foi baleada no rosto pelo acusado e a bala segue alojada próximo ao seu maxilar.

“A bala não precisa ser retirada, corro mais risco tirando do que deixando ela aqui. Talvez, mais para frente, se for preciso tirar, eu vou passar por acompanhamento com os médicos, fazer radiografia e raio-x e aí ver se a bala vai correr ou andar pelo meu corpo, para fazer alguma coisa”, disse a vítima. 

A jovem relata que já passou por vários preconceitos na vida, tendo o fêmur quebrado em um sequestro por ser da comunidade LGBTQIA+.

"Eu sempre saí, tive meu dinheiro, gostava de comprar minhas coisinhas, passear no shopping e hoje não posso fazer isso", relata Nycolle
"Eu sempre saí, tive meu dinheiro, gostava de comprar minhas coisinhas, passear no shopping e hoje não posso fazer isso", relata Nycolle |  Foto: Lucas Alvarenga
  
Estou com medo por mim e pela minha família. O agressor me mandou mensagem depois do crime. Enquanto ele não for preso, não consigo colocar o travesseiro na cama e dormir em paz, dá vontade de chorar Nycolle Dellveck, mulher trans agredida
  

“Dessa vez eu decidi não me calar, se não a sociedade vai ser sempre assim e eu poderia ser apenas mais uma trans morta virando estatística. Eu sou uma pessoa boa, que ajudo todo mundo e por isso tenho pessoas do meu lado. Hoje, vivo muita insegurança. Estou com medo por mim e pela minha família. O agressor me mandou mensagem depois do crime. Enquanto ele não for preso, não consigo colocar o travesseiro na cama e dormir em paz, dá vontade de chorar”, afirmou ela. 

Nycolle vive com ajuda de amigos e clientes. Ela precisou parar de trabalhar porque o agressor sabe onde ela trabalha e, inclusive, atirou nela quando Nycolle ia começar a trabalhar.

“Eu sempre saí, tive meu dinheiro, gostava de comprar minhas coisinhas, passear no shopping e hoje não posso fazer isso. Vai vir Natal aí e eu não posso viver e alcançar outras metas, pois estou com medo. Peço a Deus, aos meus guias e orixás, que façam justiça porque eu tenho muita fé e eu tenho certeza que pode passar o tempo que for, eu ainda vou olhar na cara dele e dizer que estou protegida sim. Foi isso que ele me perguntou antes de atirar, se eu era protegida. Não serei mais uma trans vítima de homicídio e transfobia na nossa cidade. Espero que os órgãos públicos não façam vista grossa e continuem me ajudando, só me ajudaram quando a imprensa estava em cima. Eu não me sinto segura nem dentro da minha casa com ele solto”, afirmou ela. 

Nycolle tem sobrinhos e até as crianças estão sofrendo com o ocorrido. “Os meus sobrinhos me mandam mensagem perguntando se eu estou bem, mesmo sendo todos crianças. A minha sobrinha de 6 anos achou que eu tinha morrido quando me viu na televisão e ficou falando que o moço deu um tiro no rosto meu rosto e que a ‘Tia Nycolle tinha morrido’”, contou a vítima emocionada. Marciano segue sendo considerado foragido da Justiça. 

O caso 

Dellveck foi baleada no rosto na última segunda-feira (21), na Rua São João, no Centro, e ficou internada no Hospital Estadual Azevedo Lima (Heal) por dois dias, devido a gravidade dos ferimentos. A situação teria ocorrido por intolerância religiosa.

Nycolle contou que no sábado (19) ela discutiu com um dos acusados após ele dizer que não iria levar a minha amiga dela na moto. "Eles falaram que não levavam “viado” na moto. A gente estava saindo do trabalho para ir embora”, disse ela.

A partir daí, conforme a vítima, começou o primeiro desentendimento. E Nycolle e a amiga foram embora com outras pessoas.

Segundo o relato da jovem, já no domingo (20), um dos acusados mandou mensagem para ela, que não se sentiu confortável com a indagação dele.

“Ele perguntou se eu e minha amiga iríamos para a rua. Eu catei a maldade dele e disse que não iria para a rua, que estava em Copacabana. Na segunda (21), eu desci para a rua para trabalhar. Aí ele me encontrou e falou que tínhamos que desenrolar essa discussão de domingo e eu disse: 'Peraí, que eu tenho que acender um cigarro na encruzilhada para começar o dia de trabalho'".

Na sequência, de acordo com Nycolle, o acusado teria iniciado os insultos contra a religião dela, a umbanda, e em seguida feito disparos de arma de fogo.

"Ele perguntou se eu gostava de fazer macumba e indagou se eu estava bem protegida. Foi quando eu disse que: 'Graças a Deus e aos meus orixás eu estou protegida'. Ele deu a volta, foi no ponto de mototáxi, colocou o filho dele para pilotar a moto e veio na garupa. Eu estava agachada acendendo o cigarro, ele parou a moto e já mostrou a arma e disse que eu gostava de fazer macumba, e deu o tiro”, contou a jovem. 

Nycolle disse que o acusado atirou várias vezes contra ela, mas por conseguir desviar, foi acertada por um disparo.

“Quando ele deu o tiro, eu corri, consegui levantar e correr. Nessa, ele tentou dar outro tiro. Foi quando o filho dele virou e falou que a outra estava ali e ele queria dar o tiro na minha amiga. Foi quando eu comecei a gritar e a praça toda gritou e eles deram fuga”, afirmou.

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