Justiça

Entrega legal pode evitar abandono de recém-nascidos

ECA garante a possibilidade da entrega para adoção

O ECA assegura em seu artigo 19-A, desde 2009, que 'a mãe que não deseja criar seu filho, tem o direito de entregá-lo à justiça'
O ECA assegura em seu artigo 19-A, desde 2009, que 'a mãe que não deseja criar seu filho, tem o direito de entregá-lo à justiça' |  Foto: Karina Cruz
 

Entregar uma criança para adoção está previsto como lei no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Recentemente, o caso da atriz Klara Castanho repercutiu no país. A jovem, de 21 anos, por meio de uma carta aberta, contou que engravidou após ter sido estuprada e, desta forma, tomou a decisão de entregar a criança para adoção. Este processo jurídico, denominado como 'Entrega Legal', garante a possibilidade da entrega de crianças com até 1 ano de idade para a adoção, em absoluto sigilo, visando prevenir episódios de abandono, como os que aconteceram recentemente em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio.

Na cidade, dois recém-nascidos foram deixados em locais de vias públicas, na mesma semana. Um deles estava dentro de uma lixeira. Já o outro foi colocado em uma sacola plástica, ambos os casos ocorreram na mesma semana.

O ECA assegura em seu artigo 13, desde 2009, que 'as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da infância e Juventude'.

Enfoco
  

O ENFOCO esteve na Vara da Infância, Juventude e do Idoso, da Comarca de São Gonçalo, para ouvir a magistrada titular e sua equipe, no intuito de entender como se dá na prática a efetivação deste dispositivo jurídico.

De acordo com a Juíza Juliane Mósso Beyruth, a lei é de suma importância e abrange mulheres que estão no início da gestação e decidiram que não desejam maternar naquele momento. Ela salienta os detalhes do processo.

Lei abrange mulheres que estão no início da gestação e decidiram que não desejam maternar naquele momento
  

- Em primeiro passo a mulher deve procurar apoio e orientação diretamente na Vara da Infância e da Juventude.

- Se a genitora expressar a intenção no momento do parto, a maternidade comunicará o nascimento da criança à Vara da Infância. Ela será encaminhada, imediatamente, após a alta hospitalar, para o atendimento com as equipes interdisciplinares da Vara.

- Após o atendimento, a mulher vai passar por uma audiência com o Juiz e o Promotor, onde poderá expressar sua decisão.

- Se persistir a determinação de entrega, haverá o decreto de extinção do poder familiar e a parturiente terá dez dias para manifestar arrependimento.

- O processo corre de maneira sigilosa, evitando a criminalização dessa mulher por eventual abandono do bebê com exposição a risco. Contudo, é garantido por lei ao filho biológico o direito de conhecer a sua origem biológica, acompanhado pela família adotiva, ou após os 18 anos.

Rede de apoio

Com intuito de divulgar a lei, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro, por meio da Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso (Cevij), confeccionou a cartilha 'Entregar de forma legal é proteger' que tem por finalidade anunciar este recurso para a sociedade e, sobretudo, às mulheres gestantes que não possuem o interesse de maternar, prevenindo episódios de abandono.

A juíza reforçou a importância de toda rede que acompanha e atende estas mulheres, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), orientá-las em relação a este direito, tendo o dever de encaminhá-las a Vara da Infância sempre que houver manifestação da vontade neste sentido.

Após as genitoras abrirem mão da guarda, a magistrada explica o destino da criança e salienta, também, o que acontece caso ela volte atrás na decisão.

"Apenas depois deste prazo [10 dias] a criança será encaminhada à adoção por família que esteja devidamente habilitada no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Caso a parturiente decida permanecer com a criança, haverá um acompanhamento por seis meses pela equipe da VIJI, de forma que a família tenha todo o apoio necessário., finalizou a juíza.

Na Vara, as mulheres são acolhidas por equipes interdisciplinares compostas por profissionais de Psicologia e Serviço Social. Ao atendê-las, eles elaboram um documento técnico sobre o caso e encaminham o registro para a autoridade judicial.

Lindomar Darós, psicólogo da VIJI de São Gonçalo, ressalta a importância do sigilo no atendimento e o aponta como um direito que precisa ser respeitado.

"Essa mulher tem o direito de reivindicar o sigilo. Se ela pedir sigilo, a gente tem a obrigação legal, não é só ética, de respeitar a reivindicação dela. Eu até acho que se ela puder dizer para as pessoas da família é importante, porque ela tende a se sentir menos culpada depois. E não há culpa nisso, quanto mais essa mulher puder falar disso, melhor, mas se ela não quiser falar para sua rede primária de sustentação, que é a família, amigos, ela não precisa", ressaltou Darós.

Questionado sobre os motivos que levam mulheres a tomar a decisão, o psicólogo contextualizou apontando a maternidade compulsória como um drama muitas vezes experimentado de forma sofrível por algumas mulheres. Segundo Darós, não querer aderir a maternidade não é sinônimo de abandono, em alguns casos, a exposição fala de uma impossibilidade da mulher em maternar naquele momento específico.

"Para além disso, a gente tem vivido um acirramento da desigualdade social, de concentração absurda de renda que culmina em uma miserabilidade também muito grande. São mulheres, no mais das vezes, muito empobrecidas, violentadas pela vida e a gente não sabe porque algumas delas somem, né, o bebê é deixado em algum lugar. A gente não sabe nem se esse bebê é fruto de um desejo realmente de uma relação sexual ou de um estupro. Porque muitas mulheres são estupradas sem se darem conta de que estão sendo estupradas, se a mulher não deseja transar e o homem força a barra, já configura-se um estupro. A gente precisa olhar para essas mulheres sem julgamento, mas com acolhimento. Claro que um bebê deixado exposto, dentro de uma saco de lixo, assusta a gente, mas essa não é a regra" conclui o psicólogo.

A assistente social Rafaela Marron destaca que, para além do desejo da não maternidade, a lei trata-se da possibilidade de salvar vidas. Ela ainda reforça que transmitir esta informação é uma responsabilidade coletiva.

"As mulheres são muito responsabilizadas, o tempo inteiro, e a maternidade é compulsória na sociedade que a gente vive. Essa informação é essencial para a preservação da vida da criança, porque a gente reforça que, apesar do julgamento moral, não existe o pressuposto de um julgamento que se dê nas instâncias jurídicas contra essa mulher. Não é um crime entregar um bebê em adoção, muito pelo contrário", diz Rafaela.

As mulheres são muito responsabilizadas, o tempo inteiro, e a maternidade é compulsória na sociedade que a gente vive. Essa informação é essencial para a preservação da vida da criança, porque a gente reforça que, apesar do julgamento moral, não existe o pressuposto de um julgamento que se dê nas instâncias jurídicas contra essa mulher Rafaela Marron, assistente social
  

Por fim, a assistente social ressalta que conversar com as mulheres sobre a possibilidade da entrega legal, sobre a inexistência do crime quando feito dentro do previsto em lei, pode encorajá-las a fazê-lo, prevenindo eventuais tragédias. Para além disto, Marron também inclui que, nestes casos, as mulheres são tão vítimas quanto as crianças.

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