Dor e resistência
Presídio Caio Martins: ENFOCO conta o que você não sabe
Movimentos sociais propõem instalação de 'Arco da Maldade'

Para além do futebol, shows musicais e outras atividades esportivas, o Complexo Esportivo Caio Martins teve ao menos 309 presos políticos em condições sub-humanas, nos primeiros meses de 1964, durante a Ditadura Militar, aponta a Comissão da Verdade de Niterói (CVN). Mas quem viveu o horror diz que o número supera os mil. O primeiro estádio-presídio da América Latina fica em Icaraí, Niterói, na Região Metropolitana do Rio.
Cerca de seis décadas depois, o ENFOCO apurou que movimentos sociais agora propõem algo inédito: adaptar o projeto de drenagem da Prefeitura para incluir um Centro de Memória e o Monumento de Oscar Niemeyer, o ‘Arco da Maldade’: um gesto de justiça histórica. No próximo dia 26, inclusive, haverá uma audiência pública na Câmara Municipal de Vereadores, com diversas autoridades, para tratar do tema. Representantes do Executivo foram convidados.

Proposta é construída em parceria com o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ; o Coletivo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça; o Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia; e laboratórios especializados da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Acusações contra presos políticos

‘Subversão’, envolvimento com o comunismo ou com atividades sindicais e agrárias, além de ligação com as Ligas Camponesas, estão no rol de acusações que levaram os prisioneiros para lá, conforme o documento revelado e depoimentos prestados por ex-presos.
Eram operários navais, metalúrgicos, advogados, bancários, ferroviários e camponeses de diversas regiões do estado, incluindo Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio.
Horror

Comida estragada, fazendo com que grande parte dos presos passassem mal e apresentassem problemas fisiológicos, são alguns relatos de quem passou pelo tormento, no espaço hoje lembrado de forma ampla pelo futebol. Denúncias colhidas pela CVN revelam que os detentos enfrentavam torturas física e psicológica, fome, frio e total falta de dignidade.
“Presos eram deixados ao relento mesmo sob chuva, recebiam comida estragada e, nas idas ao banheiro, tinham um fuzil apontado contra si”, detalha o vereador Professor Túlio (Psol), que é vice-presidente da Comissão de Direitos da Juventude, do Idoso e da Pessoa com Deficiência da Câmara Municipal de Niterói. Ele menciona ainda relatos de sevícias durante os interrogatórios.
O número de presos está subnotificado, acredita-se em cerca de 1,8 mil prisioneiros, enfatiza Diana Sobar - Mestre em História e militante do coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade, Justiça e Reparação
Perfis variados
A diversidade entre os detidos mostra o alcance da repressão. Ainda que faltem dados detalhados sobre perfil etário ou de gênero, como destaca Lívia Gonçalves Magalhães, professora adjunta de História do Brasil República da Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Os presos no Caio Martins mostram uma pluralidade: eram principalmente operários navais, na grande maioria, mas têm professores, estudantes, têm outros ligados à Liga Camponesa - que era um movimento do campo, de reformas importantes. Eu acho que ele desmistifica essa ideia de que a ditadura foi específica para determinados grupos, inclusive de uma elite, e desmistifica uma ideia também de uma repressão tardia", revela.
O saudoso advogado Manoel Martins, que ficou preso lá, declarou à Comissão Nacional da Verdade que mais de 1.800 pessoas foram encarceradas no estádio. Já nos primeiros dias de abril de 1964, a imprensa noticiava ‘prisões em massa’ no local
Planejamento
Mestre em Estudos Latinoamericanos pela Universidad Nacional de San Martín (Argentina) e Doutora em História Social pela UFF, Lívia Magalhães relembra que desde o momento do golpe, os jornais da época já falavam da possibilidade do Caio Martins ser uma prisão.
"Foi um planejamento. Era um estádio usado para fins políticos como eventos de governadores, de miss, reconhecimento dos corpos do incêndio do incêndio do circo em Niterói. É um lugar que tem muita conexão com a cidade. O Caio Martins ele parte da memória de Niterói. Importante lembrar que, nesse momento, Niterói é a capital do Estado do Rio de Janeiro, então é a prisão da capital do Estado".

Conforme pesquisadores, ainda foram encontrados registros de presos vindos de Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias, Cantagalo, Itaperuna, Magé, Nova Friburgo, São João de Meriti, Silva Jardim, Rio Bonito, Teresópolis, Três Rios, Trajano de Morais, entre outros.
"A maior parte (dos presos) era de homens, entre 20 e 30 anos, principalmente trabalhadores, o movimento mais forte de Niterói e cidades vizinhas", diz ao ENFOCO Samantha Quadrat, professora de História da UFF.
Traumas
As consequências dessa violência deixaram marcas profundas e, muitas vezes, permanentes. Além de sequelas físicas provocadas pelas torturas, os relatos colhem experiências de depressão, ansiedade, distúrbios psicológicos e traumas de longa duração.
“Também precisamos atentar para os chamados danos transgeracionais ocasionados pela tortura, ou seja, ao impacto que o trauma causado por atos de tortura exerce nas gerações futuras, mesmo sem terem vivido diretamente o evento”, pontua o vereador Professor Túlio, indicando estudos que abordam que estes danos podem ser manifestar em diferentes níveis, afetando a saúde mental, física e as relações sociais.
Você lembra? O complexo esportivo também funcionou como oficina provisória para reconhecimento dos corpos das vítimas da tragédia do Gran Circus Norte Americano, durante a construção rápida de caixões no Cemitério do Maruí, diante de 503 pessoas mortas. Foram mais de 800 feridos.

Diana Sobar, mestre em História e militante do Coletivo Filhos e Netos, por Memória, Verdade, Justiça e Reparação, também conta que há relatos de muitas tentativas de suicídio.
"É importante enfatizar que 9 anos antes do Estádio Nacional do Chile (1973), já existia um estádio prisão no Brasil: o primeiro foi o Caio Martins, depois o Maracanã e o Pacaembu (SP). O Brasil exportou para os países técnicas de tortura, dando workshop na década de 1970 desde estádios até o pau de arara. Os militares brasileiros foram para esses países para ensinar, usando presos como cobaia, para ensinar as técnicas de tortura", reforça.
Apesar dos inúmeros relatos e documentos, de acordo com o relatório da Comissão da Verdade de Niterói, de 2015, às Forças Armadas ainda mantêm oficialmente a versão de que o Caio Martins não foi utilizado como presídio político. A pesquisa, no entanto, desmonta essa tese com evidências contundentes.

Os locais em que os presos foram mantidos eram improvisados. Segundo os dados levantados pela Comissão Estadual da Verdade, eles foram alojados nas arquibancadas de concreto. Conforme os pesquisadores, havia uma distinção de acordo com o nível de escolaridade de modo que aqueles que possuíam ensino superior podiam ficar no espaço originalmente destinado ao vestiário dos atletas.
Sim, os presos ficaram em cubículos, muitas vezes sem ver a luz do sol. Era uma forma de tortura. Além disso, os vestiários eram usados para cuidar dos mais debilitados
O que acontecia depois?

O Caio Martins funcionava como uma espécie de filtro do aparato repressivo. Não há registro oficial de mortes no estádio, mas os presos dali eram encaminhados a centros mais estruturados para a prática da tortura.
"De lá, eram levados para prestar depoimentos em outros estabelecimentos da estrutura repressiva, notadamente o DOPS-RJ, localizado na Avenida Amaral Peixoto, no da Guanabara, situado na Rua da Relação, e no Centro de Armamento da Marinha (CAM) da Ponta D’Areia. Era nesses locais que, no correr dos interrogatórios, os presos sofriam torturas e, não raro, eram mortos", revela o Professor Túlio.


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