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    Divergências

    Polêmica na Serra: pessoas trans não podem usar qualquer banheiro

    Câmara efetiva lei mesmo após veto do prefeito de Petrópolis

    Publicado 31/08/2025 às 7:28 | Autor: Ezequiel Manhães
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    Autor da lei fala em 'resguardar a integridade de mulheres'; defensores dos direitos humanos apontam inconstitucionalidade
    Autor da lei fala em 'resguardar a integridade de mulheres'; defensores dos direitos humanos apontam inconstitucionalidade |  Foto: Divulgação

    Pessoas transgênero ficarão proibidas de usar banheiros públicos que correspondam à sua identidade de gênero em Petrópolis, na Região Serrana do Rio. A medida ocorre após a Câmara Municipal promulgar, por conta própria, uma nova lei que restringe o uso desses espaços ao sexo biológico dos usuários, com previsão de multa em caso de descumprimento. O caso gerou revolta em movimentos sociais ligados aos direitos humanos.

    O texto foi promulgado porque o prefeito Hingo Hamms (PP) não sancionou o projeto dentro do prazo legal, o que permitiu à Casa Legislativa efetivar a norma, como previsto na Lei Orgânica do município.

    Proposta pelo vereador Octavio Sampaio (PL), 2º vice-presidente da Casa, a norma deve ser publicada nos próximos dias no Diário Oficial do Legislativo, e passará a vigorar como a Lei nº 9.081/25. 

    A regra valerá para banheiros localizados em espaços públicos, estabelecimentos comerciais, industriais, de serviços, além de eventos, shows, repartições e unidades públicas municipais.

    A proposta prevê exceções apenas para banheiros de uso individual (com apenas um vaso sanitário), quando não houver uso simultâneo por pessoas de sexos diferentes. Também estão liberados pais ou responsáveis acompanhando crianças, e cuidadores de pessoas com deficiência.

    Em caso de descumprimento, a lei estabelece sanções com multas, além da possibilidade de suspensão do alvará de funcionamento.

    O que diz o autor da lei

    Para o parlamentar Octavio Sampaio (PL), a medida visa "resguardar a integridade física e psicológica de mulheres".

    Ele justifica, no documento, que a proposta foi motivada para "restabelecer a razão e a sanidade, tão atacadas atualmente, mas também evitar que nossas mulheres e crianças passem por constrangimentos". Procurado pelo ENFOCO, o vereador ainda não se manifestou.

    Pessoa trans é aquela cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo atribuído no nascimento. O termo inclui mulheres e homens trans, além de pessoas não-binárias. Identidade de gênero não deve ser confundida com orientação sexual.

    Reações

    A aprovação e promulgação da lei pela Câmara de Petrópolis provocou reações imediatas de especialistas e ativistas ligados à diversidade. Para Márcio Neves, diretor de Gênero e Pertencimento da Superintendência-Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade (SGAADA) da UFRJ, a justificativa do projeto é baseada em estigmas sem respaldo na realidade.

    "Por exemplo, a ideia de que mulheres trans representariam risco para mulheres cisgênero é infundada. Não há evidência de que o direito à autodeterminação de gênero tenha provocado qualquer aumento de violência em banheiros, nem no Brasil nem em países que adotam esse modelo, como Argentina, Noruega e Portugal", pontua.

    Neves lembra que diversos órgãos públicos, inclusive dentro da própria UFRJ, já implantaram banheiros neutros e sem marcadores de gênero, com resultados positivos, ainda de acordo com ele.

    Ele também alertou para os impactos que legislações excludentes geram no cotidiano de pessoas trans e não-binárias: abandono de espaços públicos, medo, humilhação e até evasão escolar ou universitária.

    "Pesquisas e relatos apontam para práticas recorrentes como a retenção de urina e fezes durante longos períodos, o que leva a infecções urinárias, pedras nos rins e outros problemas de saúde. Além disso, há efeitos emocionais profundos: ansiedade, depressão, isolamento e aumento dos casos de evasão por medo de frequentar os espaços públicos da instituição".

    Márcio Neves reforça que a Constituição garante, entre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o combate à discriminação (art. 3º) e a inviolabilidade da intimidade (art. 5º), o que torna a nova lei incompatível com os princípios constitucionais.

    Sem consulta

    Presidente da Comissão de Educação, Assistência Social e Defesa dos Direitos Humanos da Câmara Municipal de Petrópolis, a vereadora Professora Lívia (PCdoB) diz que não houve consulta ao comitê.

    "Não houve consulta, tampouco participação desta comissão em qualquer debate interno que legitimasse essa iniciativa. A forma como a matéria foi conduzida demonstra falta de diálogo com a sociedade, sobretudo com os movimentos sociais e especialistas em direitos humanos", pontua.

    Para ela, a promulgação da Lei nº 9.081/25 "representa um grave retrocesso civilizatório". 

    "Como presidenta da Comissão, defendo que ela se manifeste oficialmente contra a lei e atue em articulação com entidades da sociedade civil para adotar medidas institucionais cabíveis. Entre elas, está o encaminhamento de representação ao Ministério Público, questionando a constitucionalidade da norma".

    'Inconstitucional', diz jurista

    A medida também foi criticada pelo advogado Carlos Victor Nascimento dos Santos, coordenador do Núcleo de Estudos em Constituição, Justiça e Cidadania da UFF. Ele ressalta que o uso de banheiros públicos está diretamente ligado à dignidade, saúde e integridade física das pessoas, e que a lei aprovada em Petrópolis coloca a população trans em situação de exclusão e humilhação.

    Segundo o jurista, a norma "viola claramente os princípios da igualdade, da vedação à discriminação e da dignidade humana".

    Ele lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu o direito à identidade de gênero como expressão legítima da liberdade individual, e que o Brasil é signatário de tratados internacionais que garantem essa proteção.

    A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por exemplo, orienta que Estados devem adotar medidas concretas para respeitar e garantir a identidade de gênero das pessoas, mostra o advogado.

    "Ao restringir o uso de banheiros ao sexo biológico, a lei pode ser entendida como discriminatória e, portanto, inconstitucional", afirma Carlos Victor.

    O especialista também sugere que a Lei nº 9.081/25 seja contestada judicialmente por meio de uma Representação de Inconstitucionalidade (RI), tanto no STF quanto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, apontando violação à Constituição estadual.

    "Apesar de todas as possibilidades descritas, o ideal é que seja aberto um canal de diálogo e inclusão para que o Poder Público crie políticas públicas adequadas à sua realidade social e desenhadas para garantir igualdade de acesso e tratamento, capazes de combater medidas de exclusão e preconceito, e não institucionalizá-las", reforça.

    Medidas

    O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis disse à reportagem que atua diariamente recebendo denúncias espontâneas de violações de direitos humanos e encaminhando-as aos órgãos competentes.

    "Até o momento, não chegaram ao nosso conhecimento relatos de violações especificamente relacionadas ao uso de banheiros por pessoas trans em nossa cidade. Nesse sentido, oficiamos o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro para solicitar levantamento estatístico sobre eventuais ocorrências dessa natureza", conta.

    Em resposta, ainda de acordo com o CDDH, o ISP informou que os registros de ocorrência que alimentam sua base de dados não permitem identificar a orientação sexual ou identidade de gênero de vítimas e autores, tampouco há a classificação “banheiro público” entre as variáveis disponíveis.

    "Dessa forma, o Instituto declarou-se impossibilitado de atender à solicitação de dados específicos, embora tenha se colocado à disposição para futuros esclarecimentos", enfatiza a instituição.

    Com relação à promulgação da lei, o Centro diz que pretende adotar medidas tanto jurídicas quanto de mobilização social.

    Como funciona em Niterói e SG?

    Enquanto isso, em cidades vizinhas como Niterói e São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, ainda não há clareza sobre legislações semelhantes. Em Niterói, já houve denúncias de pessoas trans impedidas de usar banheiros públicos e privados, mas as prefeituras foram procuradas pela reportagem e os esclarecimentos ainda são aguardados.

    “É urgente que a sociedade converse mais sobre a diversidade e crie políticas públicas que não só garantam, mas respeitem os direitos da população LGBTQIAPN+”, conclui Márcio Neves, acrescentando que essa discussão precisa envolver especialmente pessoas cis e heterossexuais, para que compreendam e respeitem as múltiplas formas da diversidade humana.

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    Ezequiel Manhães

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    Redator

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