Angústia
Rio já tem mais de 4 mil pessoas desaparecidas apenas esse ano
Gonçalense Leonardo Bastos está entre os números
Mais de 4.200 pessoas, entre crianças, adolescentes, adultos e idosos, desapareceram no estado do Rio entre janeiro e setembro de 2023, de acordo com o Instituto de Segurança Pública. Um aumento de 10%, se comparado ao mesmo período no ano passado, quando os registros somaram 3.900 desaparecidos.
Os dados do ISP são os mais altos dos últimos sete anos, no estado. O que para muitos trata-se de apenas de estatísticas, para a família do Leonardo da Silva Bastos, de 41 anos, é uma realidade dolorosa.
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Morador de São Gonçalo, na Região Metropolitana, e pai de dois meninos, um de 9 e outro de 7 anos, Leonardo trabalhava como reparador de manutenção em uma empresa terceirizada da Petrobras. Ele desapareceu na tarde do dia 6 de setembro após sair do trabalho, no Centro do Rio. Já são dois meses de angústia.
"Os meninos estão tendo super apoio da família, como sempre tiveram. E sempre vem ao pensamento: 'papai vai voltar e vou falar que fiz isso pra ele', 'papai vai voltar e vou mostrar que aprendi isso', 'se papai tivesse aqui...'", conta o sobrinho da vítima, Rennan Laurente, de 32 anos.
Sem rastros
Leonardo foi visto pela última vez embarcando em um ônibus na Zona Sul, seguindo para o Centro do Rio.
Só quem vive sabe a dor, o sofrimento disso tudo, é pior do que uma morte. O desaparecimento alimenta uma esperança todos os dias, mas a incerteza também a cada dia
Os familiares já fizeram buscas em diferentes hospitais, delegacias e IMLs de São Gonçalo, Niterói e Rio. Eles conseguiram descobrir que Leonardo estava no Bar Beco do Chopp, na Central do Brasil, mas deixou o local após efetuar o pagamento de uma bebida.
Onde está Nykollas?
A dor da família de Leonardo pode ser sentida também pela família do estudante Nykollas Quina de Mattos dos Santos. O jovem, na época com 16 anos, desapareceu após sair para se encontrar com amigos no dia 25 de março de 2022, em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio.
Segundo a mãe do rapaz, Cléia Fabiana, de 49 anos, Nykollas nunca saiu de casa sem avisar, e quando saia a noite sabia que deveria retornar até as 22h. Mas naquela noite, a matriarca se lembra de ter cochilado e, por volta das 3h, acordou sem encontrar o filho em casa.
"Fiquei desesperada, comecei a contatar os amigos dele e ninguém. Fiquei sabendo que Nikollas tinha ido na casa de uma menina, e tinha saído de lá 0h30", conta.
Contatei a menina, que confirmou que ele tinha saído de lá nesse horário. Aí começou a minha peregrinação
Para piorar a situação, uma semana antes o jovem havia perdido o celular enquanto ajudava o pai no trabalho. Cléia registrou o caso no Setor de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios de Niterói, Itaboraí, São Gonçalo e Maricá. Ela começou a procurar o filho em hospitais, IML's e a espalhar cartazes com a foto do rapaz.
Medo e esperança
Como se não bastasse a angústia do filho desaparecido, a família do adolescente começou a ser aterrorizada por telefone, informando que Nikollas estaria morto após ter se envolvido com uma mulher comprometida, e que o corpo dele foi enterrado em uma área rural de Itaboraí.
No dia 25 de maio, um sopro de esperança: um casal entrou em contato com Cléia para informar que viu o filho dela em um mercado, no bairro Porto Velho, em São Gonçalo. Segundo relatos, os dois teriam comprado um biscoito para o rapaz, que parecia desorientado.
"A empresa não é obrigada a dar imagens das câmeras. [Na época] precisamos fazer camisas, ficar em frente ao mercado, fazer vídeos, para que a empresa, depois de 10 dias, liberasse a imagem. Levaram para a delegacia e a perícia concluiu que não pode se dizer que é ou que não é o Nikollas. Mas uma mãe reconhece seu filho, e é o meu filho", afirma.
A mãe acredita que o filho apanhou, sofreu danos mentais e está vagando pelo município: "Pegaram meu filho, bateram, acharam que ele estava morto e largaram em algum lugar por São Gonçalo. Eu acredito que Deus tenha mandado alguém para cuidar dele e, agora, ele está pelas ruas. Morador de rua, viciado em craque e desmemoriado".
Cléia conta que a cada ligação que recebe, uma nova chama de esperança toma conta do seu coração. Ela afirma que não vai desistir de buscar pelo filho.
Final trágico
Em janeiro deste ano, familiares de Adriana Silva Estevam de Aguiar, de 45 anos, pediram ajuda para encontrar a mulher, que havia desaparecido após sair de casa para uma entrevista de emprego em São Gonçalo. Cinco meses depois, um final trágico que assombraria a família para sempre: exames realizados em uma ossada encontrada em Itaipuaçu, distrito de Maricá, no início de abril, comprovaram que Adriana estava morta.
A mulher tinha quatro filhos, segundo informações obtidas com exclusividade pelo Enfoco, um deles teria ordenado a sua morte, de dentro do presídio de Benfica, na Zona Norte do Rio, onde cumpre pena por outros crimes. A morte, segundo a polícia, teve a participação de dois comparsas.
Apoio
A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) já atendeu, desde abril de 2021 até este ano, oito casos de pessoas desaparecidas, todos na Região Metropolitana. Eles salientam que, nesses casos, a primeira orientação é que a família faça, imediatamente, o registro na Delegacia de Descoberta de Paradeiros, na Cidade da Polícia.
"Nossa equipe está a postos para dar o amparo que for necessário, inclusive nos territórios, o que envolve também conhecer as circunstâncias em que o desaparecimento se dá e o impacto para a família", afirma a presidente da CDDHC, deputada Dani Monteiro (Psol).
Segundo a comissão, normalmente, a pessoa de referência entra em contato com eles através do ZAP da Cidadania (2199670-1400), quando encontra alguma dificuldade no atendimento dos órgãos públicos. O perfil desses desaparecidos é abrangente, podem ser de crianças e adolescentes a adultos.
"Há casos de pessoas que, por conflito familiar ou outras razões, resolvem desaparecer temporariamente, mas não são maioria. A solução, em alguns casos, é a constatação do óbito", finaliza.
Cadê você?
O documentário 'Cadê você?', dirigido por Humberto Nascimento (Patricia Acioli, a Juíza do Povo), resgata casos emblemáticos e anônimos de desaparecidos no estado do Rio. O documentário ainda escancara como a prática funciona como pano de fundo para crimes no estado e como as autoridades lidam com esses casos.
"Tem muitos casos de homicídios disfarçados, de desaparecimento forçado. Uma coisa que remete à ditadura e mostra que não se aprendeu nada. Se houvesse punição ao invés de anistia, essas coisas seriam mais difíceis de acontecer. A questão é não achar culpados, culpados somos todos. As pessoas somem e ficam por isso mesmo. Sequer há investigação", relata o diretor.
O convite para o início da produção, que começou a ser feita há seis meses, partiu do presidente da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, que reúne casos e faz críticas ao modo como a violência pune pessoas no estado do Rio. A organização é uma das produtoras do longa. Um dos casos retratados na obra é o do Nykollas. A obra está disponível no Youtube.
Cartilha
Em março desse ano, o Governo do Estado do Rio de Janeiro apresentou um novo guia informativo, acompanhado por um cartaz, destacando crianças e adolescentes desaparecidos no estado. O material, divulgado em março, abrange informações sobre "como evitar o desaparecimento de crianças", orientações para casos de desaparecimento e os principais canais de atendimento.
O objetivo da iniciativa é conscientizar a população e prevenir novos casos de desaparecimento, proporcionando maior visibilidade a esse tema sensível. O guia também enfatiza a importância da denúncia imediata, esclarecendo que não é necessário aguardar 24 ou 72 horas para considerar uma pessoa como desaparecida. A cartilha destaca três tipos de desaparecimento: voluntário, involuntário e forçado.
Segundo dados da Fundação para Infância e Adolescência (FIA), aproximadamente 600 jovens, entre crianças e adultos, estão atualmente desaparecidos no Estado do Rio. A fundação faz um apelo para que os pais estejam atentos às armadilhas e perigos nas redes sociais e na internet.
Principais pontos do guia
Crianças, adolescentes ou pessoas com dificuldade de comunicação devem carregar um objeto identificativo com nome, telefone do responsável e número de identidade.
Mesmo bebês podem ter identificação por meio de documento de identidade com impressão digital, facilitando a localização em caso de sequestro.
Crianças não devem ser responsáveis por outras crianças; necessitam do cuidado e proteção de adultos.
A denúncia de desaparecimento deve ser feita imediatamente à polícia, não sendo necessário esperar um determinado período.
Mudanças de comportamento, como agressividade ou reclusão, podem indicar que a criança está enfrentando algo que a assusta, seja dentro ou fora de casa.
Como ajudar?
A Polícia Civil disponibiliza o portal dos desaparecidos com detalhes das ocorrências em andamento. Se você tiver alguma pista ou reconhecer alguns dos envolvidos citados nessa reportagem os telefones da DDPA para contato são (21) 2202-0338 / (21) 2582-7129.
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