Memórias
Caixa D’Água: as peculiaridades surpreendentes em Niterói
Pesquisador faz mergulho nas origens da região do Fonseca

Quem passa pela RJ-104, na altura do Fonseca, na Zona Norte de Niterói, vê logo na encosta uma comunidade conhecida há décadas como Morro da Caixa D’Água. O nome parece simples, quase óbvio, mas a história por trás dele é muito mais antiga do que muita gente imagina. E começa lá no século 19, quando o bairro ainda era um vale agrícola cortado pelo rio da Vicência.
O arquiteto e pesquisador Luiz Marcello Gomes Ribeiro, formado pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), que se debruçou sobre mapas raros, registros do Império e fotografias centenárias, revela ao ENFOCO que a configuração geral do vale, a relação entre a base do morro, o traçado da Alameda São Boaventura, e o eixo do antigo rio ainda podem ser percebidos.
"Entretanto, os vestígios físicos das obras hidráulicas de 1860 provavelmente estão soterrados sob metros de aterro, sem, ou com pouca visibilidade superficial hoje. Ou seja: a história está lá, mas enterrada sob a modernização viária do século 20", revela.
O estudioso diz que o reservatório vinculado ao sistema do rio da Vicência ocupava exatamente a área que, décadas depois, daria origem ao Parque da Vicência, depois renomeado Parque Fagundes Varela, hoje conhecida como Caixa D'Água. A função do reservatório era captar e distribuir água trazida do alto do Baldeador, onde o sistema começava.
Mestre em Artes, Patrimônio e Cultura [PPGA/UFES], Ribeiro conta que a captação principal se fazia mais acima, no manancial da Vicência.
"A água descia por adução até o ponto mais baixo, no Fonseca, onde se localizava o reservatório associado mais tarde ao parque. O topônimo ‘Caixa D’Água’ nasce da presença do reservatório, e somente depois se consolida como denominação popular da subida e da comunidade que se estabeleceu ali", conta Luiz Ribeiro.

Poucos sabem, mas a área onde hoje está a comunidade já foi um grande parque público. Criado oficialmente em 1908 e inaugurado com festa em 1917, o Parque da Vicência era um dos espaços de lazer mais importantes do início do século 20 em Niterói.
“Do ponto de vista histórico e documental, pode-se afirmar que o Parque da Vicência ocupava sim a mesma área dos antigos reservatórios… Há continuidade espacial entre o sítio hidráulico do século 19 e o parque urbano inaugurado no início do 20", ressalta Luiz Ribeiro, que é professor e pesquisador adjunto do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UVV, em Vila Velha (ES) e pesquisador autônomo da história de Niterói.
Ele conta que o lugar recebia festas infantis, garden parties, eventos públicos e até concursos promovidos pelo Instituto de Proteção à Infância. Os bondes do Fonseca paravam ali perto, levando moradores de toda a cidade para aproveitar o espaço.
"Esse parque não estava isolado... ele fazia parte de uma malha urbana que começava a se modernizar. A linha de bondes do Fonseca, por exemplo, tinha seu ponto terminal no Largo do Moura, justamente ao lado do acesso ao Parque da Vicência. Isso é fundamental para compreendermos a força do equipamento: o parque estava integrado ao sistema modal da cidade".
O pesquisador continua dizendo que os bondes se conectavam às barcas:
"Isso garantia fluxo, sociabilidade e uma presença cotidiana do público. Niterói vivia um momento em que o lazer se articulava diretamente com a mobilidade, e o Parque da Vicência foi um núcleo importante dessa dinâmica", ensina.

A pergunta que muitos fazem é: se o reservatório era tão marcante, por que não há vestígios hoje? A resposta não está no abandono, e sim no rodoviarismo dos anos 1940, quando foi aberta a atual Rodovia Amaral Peixoto (RJ-104).
“As obras exigiram cortes, aterros e arrimos que reconfiguraram toda a base do Morro da Caixa D’Água… grandes volumes de aterro foram lançados sobre a área onde se localizava o antigo Parque da Vicência e seu reservatório histórico", pontua Ribeiro.
O estudioso é categórico sobre o impacto dessas obras:
“A estrutura histórica foi praticamente destruída. O soterramento atingiu uma cota superior a três metros, comprometendo completamente os elementos materiais da obra de 1860, entre eles as lápides de mármore epigrafadas em latim e português, que haviam sido colocadas no local na cerimônia de inauguração do sistema de captação do rio da Vicência", esclarece.
Mesmo soterrada, a memória venceu o desaparecimento físico. A população nunca deixou de chamar o lugar de Caixa D’Água. O nome resistiu à abertura da rodovia, ao fim do parque, ao avanço urbano e ao surgimento da comunidade. E isso, diz o arquiteto, não é coincidência:
“Não se trata de uma associação posterior: existe relação direta entre o nome ‘Caixa D’Água’ e o antigo reservatório do riacho Vicência. As fontes históricas consultadas demonstram que, já na segunda metade do século 19, as notícias de época se referiam explicitamente à ‘caixa d’água do encanamento do rio Vicência’ instalada no Fonseca".
Com o passar das décadas, essa estrutura física marcante, visível, funcional e localizada num ponto alto da localidade acabou dando nome ao entorno. Para Ribeiro, é possível resgatar a história, mas não basta colocar uma placa ou criar um mirante. Ele defende que o resgate só funciona se for feito com a própria comunidade:
“A memória histórica desse espaço não pertence apenas à comunidade atual, mas ao bairro e à cidade. Reconhecê-la como herdeira contemporânea é um ato de cidadania e inclusão. Antes de qualquer intervenção física, é essencial uma campanha de educação patrimonial, mostrando que o patrimônio é material e imaterial, e que a comunidade pode ser guardiã dessa memória".
Por fim, apesar de defender a memória, diz que não pode haver medidas radicais por parte das autoridades:
"A quem interessa hoje ‘ressuscitar’ um patrimônio que, embora historicamente relevante, não deixou vestígios visíveis ou cicatrizes incômodas? Certamente não interessa se isso significar expulsão, elitização ou recriação artificial de uma história desconectada das necessidades reais das pessoas".

Ezequiel Manhães
Redator

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