Debate
'Flanelinhas' legalizados em Niterói: entenda a polêmica discussão
Projeto de lei em trâmite prevê serviço com pagamento voluntário

Uma proposta ousada está em debate na Câmara Municipal de Niterói: regulamentar, de forma oficial, a atividade dos chamados “flanelinhas”, que podem ser nomeados como guardadores de veículos automotores em vias públicas. Na prática, o serviço seria gratuito, com contribuição voluntária. Mas o debate sobre possíveis extorsões é levantado.
A proposta ainda coloca em destaque a inclusão social: pessoas em situação de rua, pessoas negras e outros grupos em vulnerabilidade teriam prioridade no credenciamento, conforme diretrizes do Centro Pop e do programa Potência Negra. É o que consta no projeto de lei do vereador Jhonatan Anjos (PDT).
É uma medida concreta para 'materializar os discursos contra a desigualdade estrutural que atravessa o acesso ao trabalho e à renda na cidade'
Encaminhado à Comissão Permanente de Constituição e Justiça e Redação Final na última sexta-feira (5), conforme apurou o ENFOCO, o PL promete mexer com a rotina das ruas da cidade, caso seja aprovado no Legislativo e sancionado pelo prefeito Rodrigo Neves (PDT).
Thiago José, advogado e doutorando em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca a complexidade do caso.
Segundo ele, essa figura “se equilibra numa tênue fronteira”: de um lado, pode representar uma atividade econômica legítima, quando o motorista solicita o serviço; de outro, pode se configurar como extorsão, caso o pagamento seja exigido mesmo sem consentimento.
O advogado e criminólogo Paulo Henrique Lima, professor de Direito da UFF, opina que a proposta deve ser construída de forma participativa.
“É fundamental que o Poder Público assegure que a regulamentação seja desenvolvida com participação popular, contando com a contribuição da sociedade em geral, bem como de representantes de movimentos sociais e de instituições que pesquisam conflitos urbanos”, afirmou.
Ele defende ainda que a Câmara Municipal convoque audiências públicas e fóruns abertos, de modo a garantir essa participação.
Competição indireta?
O advogado Thiago José alerta que a regulamentação pode acirrar disputas entre aqueles que forem credenciados e os que optarem por permanecer na informalidade, já que “a prática de guardar vagas acabou por conformar uma série de mercados” com dinâmicas próprias e, muitas vezes, marcadas por disputas territoriais.
Questionado pela reportagem sobre um cenário de possível competição indireta com o sistema Niterói Rotativo, onde os motoristas pagam pelo serviço, o vereador Jhonatan Anjos descarta:
"Não, porque a regulamentação dos guardadores está restrita a áreas em que o Niterói Rotativo não atua", enfatiza.
Controle
A iniciativa tem como principal objetivo transformar uma atividade hoje marcada pela informalidade e, muitas vezes, pela falta de controle, em uma profissão reconhecida, regulamentada e com viés de inclusão social.
"O credenciamento de guardadores e a delimitação das áreas de atuação já estão em vigor desde 2014. O PL traz atualizações desse credenciamento e garantias de direitos. E sim, precisamos de maior controle, não sobre os que estão na legalidade, mas justamente sobre os que estão na ilegalidade, dando a oportunidade pra que essas pessoas atuem de maneira formal e legal", argumenta o parlamentar Jhonatan Anjos.
A ausência de normatização específica, na visão do autor da proposta, tem gerado diversos problemas urbanos, entre os quais:
- Insegurança jurídica, tanto para os trabalhadores, quanto para usuários dos serviços;
- Dificuldade na atuação fiscalizadora por parte dos agentes públicos;
- Ocorrência de práticas abusivas e coercitivas em determinados pontos da cidade;
- Desorganização do espaço público urbano;
- Ausência de perspectivas de inclusão social e produtiva para os trabalhadores informais.
Como deve funcionar?
Segundo o texto, somente pessoas credenciadas pela Prefeitura poderão atuar como guardadores de carros. E há regras claras: o trabalho será limitado a áreas pré-autorizadas; não poderá ocorrer nas zonas do Niterói Rotativo e não será permitido cobrar dos motoristas. A contribuição será voluntária, e qualquer prática de coação, ameaça ou “reserva” de vaga será proibida.
Além disso, os guardadores terão que usar colete padronizado e crachá com a frase: “A contribuição ao guardador é voluntária”.
Caso a lei passe a valer, o credenciamento será feito por meio da secretaria municipal responsável e exige alguns critérios: ser maior de 18 anos, morar em Niterói (com possibilidade de autodeclaração), passar por cursos de formação e participar de programas de qualificação.
Além do trabalho nas ruas, ainda de acordo com o PL, os guardadores terão acesso facilitado a cursos, programas de geração de renda e linhas de microcrédito, todos voltados à inclusão produtiva e ao desenvolvimento pessoal e profissional desses trabalhadores.
Texto do PL 367/2025 se alinha com a legislação federal (Lei nº 6.242/1975), que reconhece a profissão de guardador autônomo de veículos, e com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da função social da cidade.
O advogado Thiago José lembra que a lei federal estipula parâmetros para a prática dessa atividade econômica e exige o registro na Delegacia Regional do Trabalho Competente.
"Ocorre que, devido a natureza da atividade, quase sempre esses profissionais atuam na informalidade, e assim podem ser enquadrados no disposto no artigo 47, da Lei das Contravenções Penais (Exercício ilegal de profissão ou atividade)", diz.
Para o jurista, nesse sentido, "a legislação municipal pode suprir um hiato que existe entre o que é estipulado no ordenamento jurídico e o que ocorre na realidade ao criar parâmetros para o exercício dessa atividade de forma voluntária".
Já o advogado Paulo Henrique Lima conta que a efetividade da regulamentação dos guardadores depende de como o Poder Público vai articular “mecanismos de reflexão e integração social entre dois grupos que, a princípio, possuem interesses colidentes”.
Ele lembra que a classe média, já sobrecarregada por impostos, tende a resistir em contribuir, enquanto os trabalhadores não podem atuar sem contrapartidas justas.
Ressocialização
Um outro ponto que chama atenção no PL é a não exigência de certidão negativa criminal para se candidatar ao credenciamento. A ideia é dar uma segunda chance a pessoas em situação de ressocialização.
Fiscalização
A norma também prevê fiscalização rigorosa e progressiva, com sanções que vão desde advertência até a cassação da credencial, em casos de abuso ou reincidência grave. A população poderá denunciar irregularidades por meio de canais telefônicos, digitais ou presenciais.
Para Lima, o projeto só fará sentido se houver acompanhamento constante, com mediações educativas em sintonia com os direitos fundamentais.
"Se não for contaminado por palanques punitivistas, o projeto pode representar um avanço importante, desde que reduza tensões urbanas, estimule a solidariedade e a integração social e questione a lógica punitiva tradicionalmente imposta contra grupos sociais vulnerabilizados", argumenta o advogado.
Conflito?
Um dos pontos mais polêmicos da proposta é o possível embate com o Niterói Rotativo, o sistema de estacionamento público pago. Pela nova lei, os guardadores não poderiam atuar nas áreas já cobertas pelo sistema rotativo, o que pode gerar tensões.
A regulamentação, no entanto, não visa competir com o Rotativo, segundo o autor da proposta, mas organizar e humanizar as áreas fora do sistema, onde hoje reina a desorganização, a falta de fiscalização e, em alguns casos, práticas abusivas, principalmente nas orlas das praias da Região Oceânica, em épocas de verão.
Hoje já existem dois sistemas diferentes em vigência, e não há conflito. A proposta do nosso PL é muito mais de resguardar os direitos dos credenciados e combater os guardadores ilegais
O projeto ainda está em tramitação e precisa passar pelas comissões da Câmara antes de ser votado em plenário. Mas, se aprovado, a Prefeitura terá 180 dias para promover campanhas educativas e mutirões de regularização.
"Qualquer iniciativa que vise criar um horizonte de oportunidades àqueles que estão em situação de vulnerabilidade social deve ser aplaudida. Ocorre que, como o pagamento desse serviço é feito de forma voluntária, é necessário pensar outras ações para que esses indivíduos sejam incorporados em outras atividades econômicas na cidade, para que assim essas pessoas tenham, de fato, um emprego e dignidade", finaliza o advogado Thiago José.


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