Eleições
Alerta para a onda de ódio nas eleições do Brasil
Agressões e assassinatos ganham lugar no debate de ideias
A briga envolvendo apoiadores de candidatos nestas eleições, registrada nesta sexta-feira (9), durante um encontro petista em São Gonçalo, teve direito a soco e xingamentos. Também nesta semana, um petista foi morto a facadas por um bolsonarista no Mato Grosso. Episódios envolvendo intolerância política têm aumentado nos últimos tempos e considerando a possibilidade de segundo turno entre os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os conflitos recentes podem ser apenas a ponta do iceberg para crimes de ódio no país.
Outros crimes também aumentaram no primeiro semestre de 2022, marcado por mais denúncias de racismo, LGBTfobia, xenofobia, neonazismo, misoginia, apologia a crimes contra a vida e intolerância religiosa, do que o mesmo período do ano passado.
É o que mostra os indicadores da Central Nacional de Denúncias da Safernet, que recebe denúncias de crimes contra os direitos humanos praticados especificamente com o uso da internet — ao qual o ENFOCO teve acesso.
Somadas as denúncias dos sete crimes, foram recebidos 23,9 mil no período, um aumento de 67,5% em relação a mesma temporada de 2021.
Em números absolutos, a violação mais denunciada foi o de misoginia, que é o desprezo ou ódio contra as mulheres, com 7,9 mil casos.
O cenário de ódio é um fenômeno político-social, que tem um processo de formação histórica ligado as formações das nações, em conjunto com as suas noções constitutivas de organização capitalista, na visão do sociólogo e cientista político Rafael Mello, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"A partir do momento que se forma Nação, junta-se a isso a ideia de nós e eles, onde, dependendo dos arranjos políticos e diplomáticos, há uma liberdade para ódio ao outro, o inimigo a ser vencido. Perde-se uma noção de comuns, de comunidade, de empatia, de sermos seres humanos de iguais valências, e criamos a noção de superioridade sobre outros, os coisificando e a partir disso, da retirada da sua humanidade, podemos assim os aniquilar, seja por motivo econômico, político, religioso, social e etc", revela.
Um exemplo disso, conforme o especialista, são os processos de colonização, onde um grupo invade um território para exploração dos recursos naturais e humanos de um local.
"Onde o outro é tido como não humano, selvagem ou sem alma, para que se faça um genocídio em nome 'do que é certo', ou da 'evangelização', ou, ainda da 'democracia'. Diversas histórias das colonizações, das guerras ou de disputas têm esses aspectos", diz.
Baseado em análises históricas, Rafael conclui que a partir dessa construção e com o desenvolvimento das sociedades modernas, a onda do ódio se disseminou, seja de forma velada ou escancarada, como nos movimentos nazistas e fascistas.
"Essas construções permanecem num imaginário de formação das sociedades até hoje. O grande diferencial é que hoje há uma reação maior, por parte dos grupos que são atingidos por esse ódio, com isso há um enfrentamento maior. O problema é que grupos da nova direita ou da extrema-direita, conseguiram canalizar esse ódio em organização de massas e até naturalizando essas condutas, e as pessoas passam a se sentirem mais autorizadas a externarem esses sentimentos de ódio contra outros", continua.
Agressão e morte
Na manhã desta sexta-feira (9) a briga do lado de fora de um evento político petista, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, terminou em vias de fato.
Rodrigo Duarte, apoiador declarado de Bolsonaro, e candidato a vereador em 2020 pelo PRTB, acabou agredido com um soco no rosto de um apoiador de Lula. Pouco antes, Duarte passou de carro adesivado com imagens de Lula preso. O bolsonarista teria ainda proferido ofensas contra o candidato do PT, resultando na confusão que terminou com o bolsonarista ferido.
Na noite da última quarta-feira (7) — Feriado da Independência — um trabalhador de uma agrovila foi morto a facadas em Confresa, no Mato Grosso, após uma discussão política. Segundo a polícia, Benedito Cardoso dos Santos, de 42 anos, foi golpeado por Rafael Silva de Oliveira, de 24. O acusado foi preso pelo crime.
A Polícia Civil informou que Rafael é apoiador do presidente Bolsonaro e teria demonstrado apoio à reeleição. Já Benedito defendia a eleição do principal opositor do governo, o candidato Lula.
Crimes de ódio
A repressão penal aos crimes de ódio deve ser acompanhada de ações que promovam a diversidade, conforme aponta Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet, responsável pelo projeto da ONG, que trabalha numa abordagem multissetorial para proteger os Direitos Humanos no ambiente digital.
As eleições tornaram-se um campo fértil para o discurso de ódio, que desde 2018 têm registrado aumento no período eleitoral”
Mantida essa triste tendência até o final do ano, 2022 será o terceiro ano eleitoral consecutivo em que houve aumento de denúncias de crimes de ódio em relação aos anos anteriores, demonstrando que nos anos em que há eleições, ocorre um acirramento do discurso de ódio.
"O que origina este cenário de ódio remonta ao modo como a Operação Lava Jato conduziu o combate à corrupção, de maneira bem politizada. Preocupada em misturar o combate à corrupção com uma espécie de política contra à esquerda, contra o Partido dos Trabalhadores, contra o Lula", alega o cientista político Marcus Ianoni, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em levantamento divulgado em abril deste ano, a Safernet já mostrava que tanto em 2020, ano de eleições municipais, quanto em 2018, ano da última eleição presidencial, houve aumento de denúncias de crimes de ódio na internet em relação aos anos anteriores.
Em 2018 e 2020, contudo, o crime de intolerância religiosa não seguiu a tendência dos demais crimes, mas no primeiro semestre de 2022 o crime teve 2,813 denúncias, 654% a mais que no primeiro semestre de 2021, quando foram registradas 373 denúncias.
O que fazer então?
É difícil haver reversão desse cenário, avalia o sociólogo e cientista político Rafael Mello, da UFRJ.
"Muito difícil, pela complexidade do fenômeno e estar ligado à formação das pessoas enquanto seres sociais. É um trabalho longo de ressignificação humana coletiva. Tem a ver com a quebra de manutenção de privilégios, de poder econômico, social, político, etc, e de domínio. E ninguém abrirá mão disso facilmente", enfatiza.
Uma possibilidade de reversão desse quadro, conforme o estudioso, seria com a organização da população para construção de meios de socialização ainda mais comunitários e humanizados.
"Que vençam, ao longo do tempo, esse processo de divisão humana em categorias superiores e inferiores, em dominantes e dominados, seria uma expectativa de emancipação humana consciente e organizada", sugere.
Já para o cientista político Marcus Ianoni, da UFF, a derrota do atual governo representaria um freio nesse contexto. Mas não um fim.
"Talvez essa previsão não venha se confirmar, mas eu diria que hoje a tendência maior é que esse neofascismo prossiga mesmo que o Bolsonaro não seja reeleito, não tome posse [...] E acredito que a classe política tem muita parcela de responsabilidade nisso", opina.
Fazer um diagnóstico do problema é o primeiro passo para uma evolução política mais democrática e respeitosa.
"Muitas pessoas falam que a polarização é o problema, e ela não é o problema, em si. Há, quase sempre, em política, uma polarização de ideias, de visões de mundo. A questão problemática está mais atrelada ao ódio como ferramenta política, que foi instrumentalizado pela nova direita e a extrema-direita mundial", alega Rafael Mello.
Tendo o diagnóstico, segundo o cientista político, cabe aos políticos construir espaços coletivos de formação contrários à cultura do ódio.
"Atrelado a isso, deve pautar e fomentar políticas públicas de inclusão social de maiorias minorizadas pelos instrumentos de dominação, que incluem processos educacionais emancipatórios e libertários, acesso aos serviços públicos básicos e de qualidade e a melhora de vida com base no bem comum e no bem viver de todas e todos".
Outros casos
Em maio, o deputado estadual Rodrigo Amorim (PTB) agrediu verbalmente a vereadora de Niterói Benny Briolly (Psol) durante discurso em uma sessão ordinária da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Na ocasião, dentre outras ofensas, ele chamou a parlamentar de "aberração da natureza".
Amorim virou o primeiro réu por violência política de gênero do Estado do Rio, após julgamento no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro. De acordo com a denúncia, Amorim teria assediado, constrangido e humilhado Briolly.
Na mesma sessão plenária, a deputada Renata Souza (PSOL) havia reclamado de interrupções e ofensas de bolsonaristas, que vaiavam e gritavam palavras de ordem como: "lixo!" da galeria.
Os ânimos se exaltaram, a sessão foi interrompida e, na volta, Rodrigo Amorim pediu a palavra, quando ocorreu o crime de ódio.
“Vai xingar outro! Hoje, na Câmara Municipal, um vereador que parece um porco humano tava lá chorando dizendo que eu era gordofóbico. Mas ela [Renata Souza] pode se referir aos outros como boi. Talvez não enxergue sua própria bancada, que tem lá em Niterói um boizebu, que é uma aberração da natureza, que é aquele ser que tá ali, e eles não enxergam'', disparou Rodrigo.
Em julho deste ano, o petista Marcelo Arruda foi morto em Foz do Iguaçu, no Paraná, por um apoiador de Bolsonaro. Ele comemorava o aniversário de 50 anos, quando foi assassinado.
A festa tinha como tema o partido do PT com imagens que foram amplamente divulgadas nas redes sociais.
Testemunhas contaram à polícia que o assassinato ocorreu quando Jorge José, apoiador declarado de Jair Bolsonaro (PL), invadiu a comemoração e atirou no aniversariante.
Ainda de acordo com os presentes, o acusado, antes do crime, teria entrado no local gritando “Mito” fazendo referência ao presidente Bolsonaro. Na ocasião, Jorge também foi baleado por Marcelo.
Para a Safernet, os indicadores da Central de Denúncias apontam que as eleições são como um gatilho para o avanço do discurso de ódio.
Os picos de denúncias crescem em anos eleitorais, se transformando em uma poderosa plataforma política para atrair a atenção da audiência e dar visibilidade e notoriedade aos emissores.
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