Setembro Amarelo
Síndrome de burnout: quando o trabalhador deve pedir socorro
Número de afastamentos por transtornos mentais disparou 134%

A campanha Setembro Amarelo, tradicionalmente dedicada à prevenção do suicídio e à conscientização sobre saúde mental, tem ganhado novos contornos diante de uma realidade que não pode mais ser ignorada: o colapso psicológico dos trabalhadores brasileiros.
Muito além das campanhas nas redes sociais, estatísticas revelam o avanço silencioso de transtornos mentais como o burnout e ansiedade, doenças que, cada vez mais, afastam milhares de profissionais do mercado de trabalho e colocam em xeque a estrutura de suporte psicológico no país.
Segundo dados mais recentes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em 2024 foi registrado o maior número de afastamentos por transtornos mentais em mais de uma década: foram 472.328 mil trabalhadores que precisaram se ausentar de suas funções por problemas psicológicos. Em comparação com 2022, quando o número foi de 201 mil, o salto foi de 134%. Números que revelam não apenas um agravamento da situação, mas escancara a falência de estratégias preventivas no ambiente profissional.

Síndrome de burnout
A síndrome de burnout, esgotamento físico e mental extremo causado por situações de trabalho prolongado e desgastante tem sido uma das principais causas do fenômeno.
Esse aumento repentino não pode ser lido como simples “melhora na notificação” ou “aumento da procura por diagnóstico”. Ele revela algo muito mais profundo: um país inteiro está adoecendo dentro do ambiente de trabalho.
Embora não figure sozinha, divide protagonismo com transtornos de ansiedade (27,4%), episódios depressivos (25,1%), reações ao estresse severo (28,6%) e depressão recorrente (8,4%), segundo o levantamento do INSS.
A síndrome de burnout não surge da noite para o dia, ela apresenta vários estágios de esgotamento físico e psíquico relacionados à vida profissional e ao ambiente de trabalho, também chamada de síndrome do esgotamento profissional; identificada pelo psicanalista Herbert J. Freudenberger, no início dos anos 1970.
Ela começa a partir de uma dedicação exagerada à atividade profissional e uma grande necessidade de afirmação e de provar ser sempre capaz, passando por cima de problemas psicológicos e forte desgaste físico gerando fadiga e exaustão.
A síndrome de burnout, passou a ser reconhecida oficialmente como uma doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas em 2019. Isso deveria ter sido um marco. Mas, como aponta o psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Bruno Chapadeiro, a mudança até agora é mais simbólica do que real:
“Mudou o status jurídico, mas não mudaram as estruturas que produzem burnout. Empresas continuam com metas abusivas, assédio moral sistêmico e jornadas extenuantes. Agora podem ser processadas, mas preferem pagar multas a mudar o modelo de gestão”, explica o especialista.
Já para a psicóloga clínica, professora e Coordenadora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Anhanguera de Niterói, Ana Cristina Rodrigues de Vasconcellos, reconhecer o burnout como doença é um passo, mas está longe de ser suficiente:
“Nomear uma condição é um ato que traz consigo a responsabilidade de reconhecê-la e de promover o cuidado correspondente. Mas é fundamental assumir uma postura de atenção real diante da saúde emocional.”
Como reconhecer os sinais?

Ambientes de trabalho marcados por metas inalcançáveis, jornadas extensas, cobranças constantes e ausência de apoio emocional formam o solo fértil onde o burnout cresce. E quanto mais invisíveis essas pressões, mais devastadoras elas se tornam.
“São vários fatores realmente, sobrecarga de trabalho, prazos irreais, falta de autonomia, ausência de reconhecimento e conflitos interpessoais aumentam a vulnerabilidade. Isso leva ao distanciamento emocional, exaustão e sentimento de ineficácia”, explica Ana Cristina.
Os sinais, embora visíveis, muitas vezes são ignorados ou tratados com indiferença: irritabilidade, cansaço extremo, insônia, isolamento, queda de desempenho, falas sobre desistência.
E ainda assim, muitos seguem trabalhando sob sofrimento intenso movidos pelo medo do desemprego, pela vergonha ou pela falsa ideia de que “não estão aguentando porque são fracos”.
O burnout não é fragilidade individual, é resposta estressora a ambientes anormais
A professora universitária, Raija Almeida é uma das muitas profissionais que exemplificam os números. Fundadora de um dos dois únicos cursos de Educomunicação do Brasil, Raija viveu o burnout de forma devastadora: "Passei dois anos sem conseguir ligar meu computador ou entrar no meu escritório”, relatou.
Eu parecia um zumbi, ausente de tudo
O afastamento da professora de suas atividades foi determinado por seu psiquiatra após uma crise grave.
“Ele disse que era fundamental, que eu não ia sobreviver se não parasse”, comenta. Ainda assim, Raija afirma ter enfrentado resistência de colegas, que classificaram a condição como frescura ou 'mimimi'.
A professora relata ainda ter desenvolvido ansiedade, pânico, insônia, crises de choro, taquicardia, apatia, distúrbios gastrointestinais e dificuldade de concentração. Atualmente, sob acompanhamento médico e psiquiátrico, ela tenta retomar plenamente suas atividades: “Estou sem condições de fazer várias coisas rotineiras, como dirigir ou cuidar de tarefas simples.”
Resisti muito. Chorava ao sair dos grupos de trabalho. Sempre aguentei pressão, mas agora não consigo mais lidar nem com pressões mínimas, nem dentro nem fora de casa.
A docente afirma que ter sido afastada com diagnóstico de burnout em maio de 2023 e ainda não se sente capaz de voltar ao trabalho.
O jornalista Rafael Bortoloti, de 31 anos, também viveu episódios de burnout entre 2022 e 2025, causados por longas jornadas de trabalho, acúmulo de funções e pressão: “Eu dormia à meia-noite e acordava às 9h para trabalhar direto. Estava irritado, sentindo um vazio, inferioridade. Meus amigos notaram antes de mim”.
Diferente de Raija, o jornalista não se afastou por recomendação médica da primeira vez. Só agora, em 2025, interrompeu as atividades após incentivo da companheira.
“Me recuperei em um mês, focando no descanso e na terapia, que sigo até hoje”, explica Bortoloti. Ele admite que sua relação com o trabalho mudou e passou a respeitar seus próprios limites.
Profissões mais atingidas pelo burnout

Uma pesquisa realizada pela startup de saúde corporativa Way Minder, divulgada em abril de 2024, mapeou quais áreas do mercado de trabalho concentram os maiores índices de esgotamento mental. O estudo foi conduzido em 17 organizações no Brasil e contou com a participação de mais de 600 profissionais de diferentes setores.
No topo da lista das profissões mais afetadas pelo burnout estão os trabalhadores das áreas de Recursos Humanos, Vendas, Educação, Liderança, Administração e Tecnologia da Informação.
Segundo a Way Minder, esses setores compartilham características comuns: cultura de hiperdisponibilidade, cobrança constante, metas excessivas e pouca valorização pessoal um ambiente fértil para o surgimento de quadros de exaustão, ansiedade e desmotivação.
Dados do Sindicato de Saúde do Rio de Janeiro apontam que 18% dos profissionais de enfermagem da cidade sofrem de exaustão emocional severa e quase 70% relatam baixa realização profissional.
Já entre os agentes de segurança pública, a situação é ainda mais alarmante: a taxa de suicídio entre profissionais da categoria chega a ser cinco vezes maior do que a média nacional, o que impulsionou a criação de programas de escuta em parceria com o Ministério Público do Trabalho.
Curiosamente, o estado fluminense conta com uma das maiores proporções de psicólogos por habitante (3,22 por mil). Ainda assim, o número não tem sido suficiente para conter a escalada dos casos de transtornos mentais ligados ao trabalho.
Um problema estrutural
As histórias de Raija, Rafael e de tantos outros profissionais revelam que o burnout, a depressão e a ansiedade não são fragilidades individuais, mas respostas a um sistema de trabalho cada vez mais hostil, exaustivo e desumanizado.
Os números crescentes de afastamentos registrados pelo INSS apenas confirmam uma crise que já transbordou os consultórios médicos e agora exige ação urgente em todas as frentes legal, institucional e cultural.
A saúde mental no trabalho não pode ser tratada como luxo, nem restrita ao Setembro Amarelo. O colapso já chegou, e milhares de brasileiros estão pagando o preço com o corpo, a mente, e muita vezes com suas vidas.
O retorno de um profissional após um afastamento por burnout ou depressão não pode ser tratado como uma simples “alta médica”. Para os especialistas, esse momento exige atenção redobrada, readaptação e mudanças no próprio ambiente que causou o adoecimento.
“De que adianta tratar o trabalhador e mandá-lo de volta para o mesmo lugar que o envenenou?”, questiona o Dr. Bruno Chapadeiro.
“É preciso reduzir a carga, adaptar as atividades, eliminar práticas estigmatizantes e oferecer acompanhamento terapêutico contínuo”, reforça a professora Ana Cristina.
Para quem sofre calado, tentando manter as aparências no ambiente de trabalho enquanto desaba por dentro, a mensagem dos especialistas é clara:
“Seu sofrimento não é fraqueza, é resposta normal a um sistema anormal. Busque ajuda, mas entenda: o problema não está só em você. Conecte-se com outros trabalhadores. A saúde mental é coletiva”, afirma Chapadeiro.
Reconhecer que algo não vai bem e buscar apoio é um ato de amor-próprio
Falta de apoio
Apesar da gravidade da situação, a estrutura pública de atendimento à saúde mental ainda é precária. Dados do IBGE, por meio da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), revelam que menos da metade dos municípios brasileiros (46%) possuem algum programa específico para tratar transtornos mentais.
Isso significa que milhões de brasileiros adoecem sem diagnóstico, acompanhamento ou suporte adequado para identificar o próprio esgotamento, não buscam tratamento e ainda enfrentam preconceito no processo.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 15% da população economicamente ativa sofre com algum transtorno mental, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que depressão e ansiedade geram um prejuízo de US\$ 1 trilhão por ano à economia global, em razão da queda na produtividade.
Diante do avanço dos casos, o Ministério do Trabalho e Emprego atualizou, em 2025, a Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1). Agora, as empresas são obrigadas a identificar e gerenciar os chamados riscos psicossociais como estresse crônico, assédio moral, cultura de medo e sobrecarga em seus Programas de Gerenciamento de Riscos (PGR).
A medida, no entanto, ainda não tem força de fiscalização efetiva: até 2026, o governo adotará uma abordagem educativa, sem aplicação de multas, adiando o impacto real da nova exigência.
E agora, o que as empresas podem fazer?
Segundo o especialista da UFF, primeiro é preciso parar com o wellbeing washing, mas também acabar com metas abusivas, combater assédio moral, garantir jornadas decentes.
Wellbeing washing: a prática adotada por empresas ou instituições de promover um discurso de cuidado e bem-estar físico, quando na realidade não oferecem condições ou ações concretas que sustentem esse discurso.
Já a psicóloga Ana Cristina defende ações práticas e sustentáveis:
“A gestão equilibrada da carga de trabalho, metas realistas, feedback contínuo, ambientes empáticos e programas de apoio psicológico fazem diferença", conclui.


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