Inclusão
Preconceito em 'Vale Tudo' reacende discriminação contra PcDs
Especialista alerta para o capacitismo presente na sociedade

O remake da novela 'Vale Tudo', baseada na história original do autor Gilberto Braga, revela uma nova versão, escrita por Manuela Dias, que não tem vergonha de abordar temas sociais e gerar discussões relevantes. Entre os temas, porém, um ganhou atenção especial dos espectadores: o preconceito da personagem Odete Roitman com o filho Leonardo, deficiente físico.
No enredo, o personagem interpretado pelo ator Guilherme Magon é filho de Odete (Deborah Bloch) e fica deficiente após sofrer um acidente de carro. Desde então, o rapaz vive em uma cadeira de rodas, com sequelas graves do ocorrido, sendo mantido vivo em segredo. Em cena, a condição do filho faz com que Odete o despreze em toda oportunidade que tem, afirmando que "Leonardo morreu" e até mesmo chamando o próprio filho de "pedaço de carne".
Para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a discriminação retratada na relação da mãe com o filho na novela é um exemplo sólido de capacitismo, o ato de desrespeitar, através de falas, comportamentos e tratamentos, pessoas com deficiência (PcD) e pessoas autistas. Para compreender melhor o assunto, Virginia Vasquez, terapeuta, fonoaudióloga e fundadora do Instituto Celebra e Espaço Cel, explica: "O capacitismo acontece, em sua maioria, quando se subestima a capacidade de pessoas com deficiência e pessoas autistas, como se elas não fossem capazes ou autossuficientes. Esse preconceito da sociedade ainda é muito grande."
O Ministério da Saúde informa que se define como PcD, pessoas que têm algum impedimento de médio ou longo prazo que tenha natureza física, mental, intelectual ou sensorial, de forma que isso atrapalhe sua participação plena na sociedade em relação as demais pessoas.
Desafios no mercado de trabalho
Dados do IBGE relevam que, no Brasil, cerca de apenas 28% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar estão empregadas. Em soma, mesmo com a Lei de Cotas, apenas 53% das vagas reservadas para PcDs em empresas estão preenchidas.
Isso significa que sete a cada dez PcDs no país estão desempregados.
Para Virginia Vasquez, a ausência de PcD dentro do mercado de trabalho pode ser explicada através do preconceito, ao afirmar que "nossa sociedade ainda tem muita dificuldade de aceitar a diversidade e isso atrasa que os espaços sejam desenvolvidos e adaptados para essas minorias."
Acrescentando ainda que "espaços como bancos, shoppings e aeroportos, já têm melhorado bastante, mas ainda não é suficiente dada a demanda de pessoas neurodivergentes (TEA) e com deficiência que temos".
Autismo

No Brasil, pelo menos 14,4 milhões de pessoas tem algum tipo de deficiência, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que representa cerca de 7,3% da população. Além disso, o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) revela que foram atendidas, em 2021, cerca de 9,6 milhões de pessoas com autismo, sendo 4,1 milhões crianças de até 9 anos de idade.
A partir destes dados é possível compreender que, apesar de pessoas autistas não serem consideradas deficientes em sua definição, a legislação brasileira atribui o autismo à condição de PcD, assegurando as mesmas garantias, proteção de direitos e benefícios sociais.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido, pelo Ministério da Saúde, como uma condição neurológica que pode interferir o desenvolvimento social de alguns indivíduos, seja pela interferência na comunicação, linguagem, comportamento ou interação social.
Buscando apoio

A especialista explica que é importante que tanto PcD, mas principalmente pessoas com TEA, busquem suporte da família o mais cedo possível. Ela afirma que, com apoio familiar, crianças com autismo, por exemplo, podem ser inseridas na sociedade mais facilmente, seja no apoio dentro de casa, dentro de escolas específicas ou até em clínicas especializadas.
Já para pessoas com deficiência, a busca é tão importante quanto, mas nem sempre suficiente. É o caso de Lua Miranda, de 24 anos, aluna de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, que lembra de sofrer de fibromialgia desde a infância.
No início, a família pensava ser dor do crescimento, mas conforme a adolescência chegava, as dores pioravam. Ela chegou a visitar inúmeros ortopedistas e reumatologistas, que indicavam anti-inflamatórios e não ajudavam a melhorar o quadro. Lua só conseguiu o diagnóstico de fibromialgia em 2023, quando descobriu que muitos outros sintomas que sofria eram relacionados à síndrome.
"Hoje reconheço que seria muito difícil me diagnosticar naquela época, pois os estudos sobre a fibromialgia só ganharam visibilidade nos últimos anos", afirmou a estudante.
A Lei 15176/2025 que reconhece a fibromialgia como deficiência, foi aprovada somente em julho deste ano.
Desafios na educação
Além de universitária, Lua também faz parte da Diretoria de Acessibilidade do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFF, onde atende relatos e vivências de outros alunos da universidade.
Entre as reclamações, se destacam a falta de uma sala de aula com autorregulação e conforto, área de almoço mais silenciosa, espaço reservado para realização de provas ou tempo de prova estendido, além da falta de intérpretes de libras em aulas obrigatórias.
"Inclusive, falando sobre deficiências não ocultas, ainda encontramos dificuldades para pessoas com mobilidade reduzida e deficientes visuais em todos os campus, onde o piso tátil não está aplicado conforme a NBR e em alguns pontos não temos pistas lisas para que cadeirantes ou pessoas com andadores executem o trajeto com autonomia", esclareceu.
Caminhos para a inclusão

Lua conta que, apesar de alguns professores ainda serem realmente preconceituosos, a falta de acessibilidade dentro dos espaços públicos vem da ausência de informação:
Acredito que por meio de ações de conscientização, nossas vivências seriam entendidas e nossas necessidades atendidas
Neste ponto, Virginia concorda e reforça: "A primeira coisa que as instituições devem fazer é treinar seu pessoal, para que assim possam receber melhor PcD e pessoas com TEA. A partir do momento que se tem conhecimento, há inclusão", afirmou a terapeuta.
Cordões de Identificação

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer, em modo federal, como símbolo nacional para identificar pessoas com deficiências ocultas ou não visíveis. O reconhecimento foi uma importante vitória para toda a comunidade de pessoas com doenças raras, crônicas, neurodivergentes e com deficiências não tão óbvias.
Virginia defende que o aumento no uso dos cordões facilitou a rotina dessas minorias.
"Acho bem bacana. O cordão foi um avanço para as pessoas serem identificadas, afinal são deficiências ocultas e nem sempre está visível".
Já para Lua Miranda, os cordões representam apenas o início de um longo processo de conscientização.
"Os cordões ajudam, mas para sermos vistos ainda é necessário que os demais entendam o significado deles. É uma dualidade, admito. Ainda não estamos isentos do preconceito, justamente pelos cordões exporem nossas condições, mas é um pontapé para o acesso aos nossos direitos", afirmou a estudante.
O jornalista Evaristo Costa, que sofre de doença de Crohn, enfermidade inflamatória intestinal crónica, gravou um vídeo destacando a importância do uso dos cordões:


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