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    'Isso é crime': médica brasileira rebate fala de Trump sobre autismo

    Presidente dos EUA relacionou uso do medicamento com TEA

    Publicado 23/09/2025 às 9:06 | Atualizado em 23/09/2025 às 9:22 | Autor: Ezequiel Manhães
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    A fala do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, associando o uso de paracetamol (acetaminofeno) na gravidez ao aumento do risco de autismo em crianças, causou forte reação na comunidade médica e científica nesta segunda-feira (22). Médicos e pesquisadores classificaram a declaração como infundada, perigosa e mais um exemplo de desinformação.

    Uma das críticas mais contundentes veio de Luana Araújo, infectologista brasileira com atuação na divulgação científica e em políticas de saúde pública. Ela ficou conhecida após depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, em 2021.

    Aspas da citação
    Não. O autismo não é causado pelo uso de paracetamol, nem pelas crianças, nem pelas grávidas, nem por adultos em qualquer momento da sua vida e também não é causado pelo uso de vacinas. Ponto. Esse é o recado
    Luana Araújo, médica infectologista
    Aspas da citação

    Antes disso, Trump afirmou que a FDA, agência reguladora de medicamentos do país, deve notificar médicos sobre o suposto risco do uso do medicamento durante a gravidez.

    Ele disse que “tomar Tylenol não é bom” e, por isso, o governo norte-americano deverá recomendar que grávidas evitem o medicamento, a menos que seja algo “estritamente necessário”.

    As falas, no entanto, não têm respaldo científico. Especialistas de diversos países, incluindo os Estados Unidos, reforçam que não há evidência conclusiva de que o uso da droga na gestação esteja relacionado ao desenvolvimento do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

    “Deveria ser tratado como crime”

    A especialista em doenças infecciosas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não poupou críticas à declaração de Trump. Para a doutora Luana Araújo, a postura do governo americano representa um desrespeito.

    “Isso deveria ser tratado como um crime”, afirmou. “É um exemplo claro e inequívoco de negacionismo científico, de ignorância metodológica, de interesses escusos e desrespeito a uma comunidade enorme que precisa e merece o nosso respeito, acolhimento e suporte.”

    Ainda durante o mesmo pronunciamento, Trump também sugeriu o uso da leucovorina, uma forma de ácido fólico utilizada em tratamentos oncológicos, como possível terapia para o autismo. O governo, porém, não apresentou nenhum estudo ou dado que comprove a eficácia dessa recomendação, tampouco sua segurança.

    O que é o autismo e o que diz a ciência

    Conforme especialistas, a confusão causada por falas como a de Trump contribui para desinformar a população sobre o TEA, frequentemente alvo de teorias infundadas. Mestre em Saúde Pública pela universidade Johns Hopkins Bloomberg, nos Estados Unidos, Luana Araújo explica:

    “Quando a gente fala em TEA, estamos falando de uma condição secundária a alterações do neurodesenvolvimento. Lá na gravidez, principalmente no primeiro trimestre, essas conexões cerebrais são formadas de maneira acelerada. Nessas pessoas, as conexões resultantes são um pouco diferentes daquelas consideradas típicas”, explica. “Depois do nascimento, em algum momento, essas pessoas podem manifestar sintomas classificados dentro do TEA e que podem precisar de menor ou maior grau de suporte.”

    Ela ainda reforça que o autismo não é uma doença, mas uma condição de base neurológica com manifestações extremamente variadas, o que justifica o termo “espectro”. Pode incluir desde dificuldades leves na comunicação social até quadros mais graves com ausência de fala e deficiência intelectual.

    “Exatamente por ser uma condição altamente complexa e um grande desafio clínico, o TEA é felizmente um assunto profundamente estudado nas últimas décadas. Mas, infelizmente, também é uma porta de entrada para o negacionismo e o charlatanismo como poucos temas em medicina são”, disse a médica.

    Ela relembra que, ao longo da história, mães já foram culpabilizadas pelo diagnóstico dos filhos, além de o autismo já ter sido falsamente vinculado às vacinas, no caso de um artigo posteriormente desmentido e considerado fraudulento que ligava a vacina tríplice viral ao TEA.

    Agora, segundo a médica Luana Araújo, o paracetamol (Tylenol) entra nessa lista de desinformações, de forma igualmente infundada.

    O que dizem os estudos?

    Segundo Luana, não há qualquer evidência robusta de causalidade entre o uso de paracetamol e o TEA. “É uma droga extremamente segura, principalmente para gestantes, e exatamente por isso ela é recomendada em caso de necessidade”, afirma.

    Ela lembra que os estudos que relacionam paracetamol ao autismo são apenas observacionais, e não experimentais, o que impede que se estabeleça qualquer relação de causa e efeito.

    “Esses estudos nascem com a impossibilidade metodológica de apontar causas. É simples. É rudimentar. É a base da metodologia científica”, critica. “É muito assustador que, de um país que sempre foi considerado um norte científico para o resto do mundo, venha a imposição de uma conclusão absolutamente falsa e desconectada da realidade científica.”

    O que pode estar relacionado ao TEA?

    A ciência atual indica que o autismo tem origem multifatorial, envolvendo tanto questões genéticas quanto ambientais. Luana Araújo destaca que, embora não haja uma causa única e definida, alguns fatores estão relacionados a um risco aumentado, o que é muito diferente de dizer que causam a condição.

    "A gente pode falar de idade materna e paterna avançadas, prematuridade, algumas infecções na gestação, poluição do ar... A gente tem uma gama de fatores que estão relacionados. Mas a gente não tem uma causa simples, única - que, eu imagino, seja a vontade de muita gente. Infelizmente, não podemos dizer que isso existe".

    Um problema de saúde pública

    Por fim, a médica alerta para os impactos concretos que falas como a de Trump podem causar na vida de pessoas com TEA e seus familiares:

    “Essas mentiras vulnerabilizam pacientes e familiares, submetem crianças e adultos a tratamentos inexistentes e potencialmente danosos, causam imensa angústia e culpabilizam gestantes, mães, pais e responsáveis”, disse. “Tiram dinheiro, energia e recursos dos pontos onde realmente deveríamos investir. Isso deveria ser tratado como um crime, e não podemos deixar que esses criminosos sobrevivam às custas dessas pessoas", finaliza.

    Aumento no número de diagnósticos

    Apesar de o número de diagnósticos de TEA ter crescido nas últimas décadas, isso não indica um aumento real na prevalência do transtorno, mas sim uma maior conscientização e ampliação dos critérios diagnósticos. Até os anos 1990, apenas casos graves eram incluídos nas estatísticas. Hoje, quadros leves também são reconhecidos e diagnosticados.

    De acordo com especialistas ouvidos pela agência Associated Press, a prevalência estimada passou de 1 para cada 150 crianças no início dos anos 2000 para 1 em cada 31 atualmente, reflexo direto de avanços na detecção e no conhecimento sobre o espectro.

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    Ezequiel Manhães

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