Operação Rastreio
Falha técnica leva à prisão de trabalhador em Niterói: 'Desesperador'
Defesa critica falta de integração entre Anatel e Polícia Civil

Uma falha grave de comunicação entre a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Civil levou à prisão injusta de um técnico de celular de Niterói, na Região Metropolitana do Rio. Ele teve a liberdade provisória concedida pela Justiça após a audiência de custódia.
O caso ocorreu em 22 de setembro deste ano, durante a operação “Rastreio”, que vem sendo realizada no estado do Rio, com o objetivo de combater a receptação de celulares roubados ou furtados.
O problema aconteceu com Fábio Luiz Lopes da Silva, de 42 anos, dono de uma banca legalizada na Rua Almirante Tefé, no Centro de Niterói. Ambulante licenciado, ele atua no ramo há quase 30 anos, vendendo acessórios e realizando consertos de celulares há pelo menos 15.
Ficar numa cela de delegacia é desumano. Você dorme no frio, não tem coberta, não tem nada. O tempo todo é desesperador. Eu só pensava que tinha que haver justiça, porque sou inocente
Segundo o processo, Fábio foi surpreendido por volta das 16h, durante uma abordagem policial na barraca 12. Dois aparelhos, um iPhone 7 e um iPhone 8, foram apreendidos sob suspeita de serem roubados. No entanto, ambos constavam como “regulares” no sistema da Anatel, que deveria indicar restrições.

A partir dessa contradição, Fábio foi preso em flagrante por receptação qualificada, uma acusação com pena mais grave.
“Ele foi preso em flagrante em uma segunda-feira. Pernoitou na 76ª DP (Niterói) e na terça pela manhã foi conduzido para Benfica. Lá passou mais uma noite e teve a audiência de custódia na quarta à tarde, na qual teve a sua liberdade deferida. Ou seja: duas noites e três dias”, relata Thiago José, advogado da Associação de Camelôs de Niterói, que representa a defesa de Fábio Luiz.
Consequências graves

A Justiça, ao analisar o caso na audiência de custódia realizada em 24 de setembro, acatou o argumento da defesa e entendeu que Fábio não tinha como saber que os celulares eram roubados, já que o sistema da Anatel indicava que estavam em situação regular.
A juíza Rachel Assad da Cunha concedeu liberdade provisória, por entender que não havia risco à ordem pública e que o crime não envolvia violência.
A gente que trabalha de forma honesta, que não vive de prática criminosa, não imagina que pode ser preso, né? Você acha que a boa-fé da sua atuação te garante
Mesmo assim, Fábio passou a responder em liberdade com medidas cautelares, como comparecimento mensal em juízo e restrição de viagens fora da comarca.
“Não senti que a justiça foi feita. Eu senti um alívio da minha injustiça. Porque o simples fato de eu ainda estar respondendo ao processo, tendo custo com advogado... isso nem deveria ter acontecido. Eu nem deveria ter sido preso [...] O cliente levou o celular para fazer um orçamento. Consultei o IMEI no site da Anatel e estava limpo. Acreditei na informação do site oficial", enfatiza ele.
Apesar disso, os policiais identificaram registros de roubo dos aparelhos em seus próprios sistemas, o que levou à prisão imediata do técnico. Segundo Fábio, ele não foi informado previamente de que os bancos de dados da polícia e da Anatel não se comunicam.
Distorções
Para o advogado Thiago José, que também é doutorando em ciências jurídicas sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o problema vai muito além do caso de Fábio.
“Essa operação é louvável, no sentido de asfixiar uma prática criminosa que aflige a população: o medo de ter o celular roubado. Mas desde agosto percebemos distorções, especialmente ligadas ao aplicativo Celular Seguro, que vive inoperante. São vários comentários na loja de aplicativos falando sobre. O técnico não consegue acessar o IMEI e verificar a legalidade do aparelho”, argumenta.
Ele alerta que o problema atinge não só profissionais, mas qualquer pessoa que tente comprar um celular usado.
"A operação não tem arbitrariedade. O grande problema é essa base de dados que serviria pra resguardar o técnico ou qualquer pessoa que compraria o celular. Só que ela não se comunica com a base da Polícia Civil", continua dizendo o advogado.
Danos imensuráveis

Fábio Luiz é ex-presidente da Associação de Camelôs de Niterói e agora está à frente de um movimento que busca criar uma unidade de técnicos de celular, em articulação com o poder público. Uma reunião na Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Niterói está marcada para a próxima quinta-feira (16).
"Não existe nenhuma lei federal ou estadual que regulamente a profissão de técnico de celular. A nossa iniciativa é provocar isso. A gente não tem nenhuma segurança jurídica", argumenta o profissional do setor.
Já o advogado Thiago José diz que a grande questão relacionada aos técnicos é justamente a penalização maior, em virtude da sua atividade econômica.
"Mesmo usando todos os expedientes legais, acabam sob suspeita. Não há segurança nos dados acessados e eles podem ser acusados de receptação qualificada, o que pode gerar prisão em flagrante e até prisão preventiva. São danos imensuráveis na vida de uma pessoa”.
Pena de 3 a 8 anos

O jurista explica que, nesse tipo de crime, a pena “sai de 1 a 4 anos para de 3 a 8 anos”, por ser considerada qualificada quando associada à atividade profissional. Isso, segundo ele, torna a situação ainda mais grave para trabalhadores informais ou autônomos.
No caso de Fábio, outro fator que pesou na acusação foi a ausência de uma ordem de serviço assinada pelo cliente. Ele explica que nunca utilizou esse tipo de documento por confiar na relação que construiu com sua clientela ao longo dos anos.
“Eu enxergava ordem de serviço como um termo de garantia. Sempre tive uma relação muito pacífica com meus clientes, então nunca vi necessidade. Quando os policiais perguntaram, expliquei isso", conta Fábio.
O técnico relata que muitos aparelhos roubados acabam sendo revendidos por terceiros na internet, sem que o comprador tenha conhecimento da origem ilícita.
“Como aqui no Rio não tem como saber se um aparelho é roubado ou não, porque a polícia não cruza informações com a Anatel e não tem um app pra isso, os celulares roubados acabam sendo vendidos como se fossem legítimos. E as pessoas compram sem saber", continua dizendo o técnico.
Dias angustiantes
Fábio contou o desespero dos dias nos quais ficou custodiado.
"Eu cheguei, fiquei na cela e disse: o que eu estou fazendo aqui? Trabalho corretamente, não faço nada de errado. Isso aqui não é pra mim", conta emocionado.
Ele se queixa que o maior desespero foi pensar na família, especialmente nos filhos: um deles de 21 anos, que está em acompanhamento psicológico, e o mais novo, de apenas dois anos.
“Tenho cinco filhos. Pago pensão. Essas eram minhas maiores preocupações. Ninguém da minha família esperava por isso.”
Propostas
A ideia da mobilização da categoria agora é pressionar às autoridades por mudanças urgentes:
“Nossa proposta é que, assim que um celular for incluído como roubado no RO (Registro de Ocorrência), a autoridade policial tenha obrigação de comunicar imediatamente à Anatel, porque as vezes a vítima não faz esse procedimento e acaba havendo distorção”, comenta o advogado Thiago José.
Há também propostas sendo discutidas em nível federal, como a criação de um cadastro de celulares vinculado ao CPF ou CNPJ, com apoio do Instituto Popular de Segurança Pública, Social e Climático (IPOP).
Posicionamentos
Anatel
Procurada, a Anatel ressaltou, inicialmente, que a base de dados de terminais roubados utilizada no projeto Celular Legal e no aplicativo Celular Seguro não é operacionalizada pela Anatel, mas sim pela ABR-Telecom em nome das prestadoras.
"A Anatel não faz inclusão ou exclusão de IMEIs na base, mas define os critérios e procedimentos de como isso deve ocorrer. Feito esse esclarecimento, destacamos que os IMEIs de terminais roubados são incluídos na base após requisição do usuário vítima de roubo, furto ou extravio (por meio do aplicativo Celular Seguro ou diretamente junto à prestadora) ou pelas secretarias de segurança pública estaduais que aderiram à iniciativa, como a SSP-RJ", diz a nota.
O órgão segue dizendo que "não é de conhecimento da Agência a existência de falha na base do Programa Celular Legal que impeça a inclusão de IMEI de terminais roubados, estando a SSP-RJ apta a requisitar as inclusões normalmente".
Quanto ao motivo pelo qual os IMEIs que constavam em BO da SSP-RJ não foram incluídos na base do Celular Legal, segundo a Anatel, "cabe a referida secretaria solicitar a inclusão do IMEI na base após a abertura do BO".
ABR Telecom
Já a ABR Telecom, associação formada pelas principais empresas de telecomunicações, esclarece que as inclusões no serviço de bloqueio de aparelhos de celular roubados podem ser feitas diretamente pela operadora de telecom, a pedido do usuário que comprove roubo, furto ou perda do aparelho, pelo aplicativo Celular Seguro do Ministério da Justiça e também pelas autoridades policiais.
"No caso do celular com IMEI nº 354830096327806, segundo nossos registros, o bloqueio foi solicitado pela operadora Nextel em 26/12/2019 e, posteriormente, desbloqueado, também a pedido, em 8/1/2020. Sobre o caso do celular com IMEI nº 358684092094506, não foi efetuado qualquer pedido de bloqueio", afirma o órgão.
A ABR Telecom esclarece que atua no desenvolvimento, implantação e gestão de sistemas e soluções integradas às operadoras de telecomunicações no Brasil. Dentre os sistemas geridos pela ABR Telecom estão o “Consulta Celular Legal”, que desde 2015 cadastra IMEI de aparelhos roubados, e permite sua consulta no site www.consultaserialaparelho.com.br. Até o momento, no cadastro, constam 17 milhões de IMEI.
"O Celular Seguro, programa do Ministério da Justiça lançado em 2023, oferece controle ao cidadão para bloquear seu aparelho, linha telefônica e contas vinculadas, em caso de furto, roubo ou extravio. Os dados de aparelhos roubados cadastrados pelo programa Celular Seguro do Governo Federal, criado em 2023, são incorporados a esse sistema", esclarece.
Polícia Civil
A Polícia Civil diz que "recomenda que as consultas sejam feitas por meio do aplicativo Celular Seguro RJ. Nele, é possível verificar se o aparelho consta como produto de crime. A ferramenta também é usada pelos agentes no curso das diligências".
Sempre que constatada irregularidade, ainda segundo a instituição, "o receptador será autuado em flagrante e/ou investigado".
SSP-RJ
Já a Secretaria de Segurança Pública (SSP-RJ) ainda não se manifestou sobre os apontamentos levantados pela categoria.

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